quarta-feira, 8 de junho de 2011

Verbo Intransitivo.

É, Deus, parece que vai ser nós dois até o final.


Era uma vez um apartamento distante, em um prédio distante, em uma rua distante, em uma cidade ainda mais distante, de um estado-região-país-continente-planeta ainda mais distante. É claro, em um Universo ainda mais distante que tudo. Era uma vez um menino tão distante assim de nós. Gostaria de chamá-lo por João. E então damos início a história. João um dia nasceu, meio amarelado, e parecido com um joelho recém-esfolado, e silencioso. João demorou a chorar. Naquela época, ainda usavam o método da palmada no bumbum, e foi através dele que João chorou pela primeira vez na vida. Ele sempre foi um daqueles humanos que só choram depois de uma dor insuportável. Mas é claro que, proporcionalmente, os tapas que João recebia para chorar, foram, ao decorrer do tempo, se tornando cada vez mais fortes. Por exemplo, a segunda vez em que João foi visto derramando uma lágrima - só umazinha, pois precisou se conter -, foi quando sua mãe derramou uma panela de água fervente em seu pé esquerdo. João ainda calçava 32, e parte do seu pé permaneceu neste mesmo número para sempre. Mas isto não vem ao caso. O que importa era que João tentava, a seu máximo, ser forte. Para sua infelicidade, continuava sendo humano. E como acontece de caírem os dentes de leite e depois nascerem os outros, acontece de cairmos na realidade e nascermos para algo novo. Alguns puxam o cabelo, outros acham que eram cócegas, mas João optou por dar o troco de balinhas na primeira vez em que se viu apaixonado. Ele pôde, desde a primeira vez, diferenciar "amor" das outras coisas todas. E, apesar de ficar ainda mais adorável usando uma beca - sua primeira -, João não foi capaz de, naquela idade, ter plena compreensão e entendimento de uma coisa fundamental: que certas coisas acabam. Foi quando, sentado na privada, da última cabine do banheiro, daquele auditório minúsculo e embolorado, João soltou sua terceira lágrima. Ou melhor, uma série de lágrimas, e umas miniaturas delas, e algum pouco de catarro. Repito que João era um daqueles humanos que só choram quando enfrentam uma dor insuportável. Por exemplo, João não chorou quando rasgou o queixo pulando os degraus de uma escada qualquer. Nem chorou quando seu pai se mudou para outro apartamento em outra cidade-estado-país distante. Nem quando Doutor - seu vira-lata cor-de-terra - foi atropelado bem a sua frente. João, como muitos, chorou naquele banheiro por jurar ter perdido seu amor. Mal sabia ele que amores são todos aqueles que queremos que sejam amados. Temos o dom de nos apaixonar por flores, e por unicórnios e, talvez, por passados. A gente aprende a amar qualquer coisa que nos desperte. Mas João jurou, e assim permaneceu, se remoendo por mais dias, em greve de fome, se desgarrando dos brinquedos, e juntando moedas para comprar um violão. A verdade é que, naquela época, mal soletrar a palavra "amor" ele sabia. Foi crescendo e suportando que João aumentou sua coleção de becas, aprendeu mais palavras, se encostou em mais portas de banheiros, assistiu acontecerem mais tragédias. Às vezes a vida parece mesmo um ciclo, foi o que ele pensou, quando teve aquela mesma vontade de dar seu troco de balinhas. Mais uma vez, mostrou que, desde sempre, sabia diferenciar "amor" das outras coisas todas. E já tinha pêlos corporais o suficiente para admitir que as possibilidades de amar nunca acabam. Ninguém pode negar nenhuma das oportunidades de ser despertado. O segredo é se entregar. João, forte como sempre, demorou, mas logo aumentou as balinhas para um buquê de rosas, das rosas fez um par de anéis, para eles uma chave, para a chave uma porta, para a porta um apartamento: para o frio, os dois abraçados sobre a cama. De tanto apertar, os pássaros escapam. Demorou até que ela partisse para que João entendesse que todos têm asas. Ele já tinha vestido becas demais para se sentar em qualquer privada, de qualquer cabine, de qualquer banheiro, de qualquer auditório minúsculo embolorado ou não. Desta vez acrescentou murros e gemidos ao coquetel de lágrimas. E pensou: o amor é sempre triste. O que há de alegre em se entregar? João, naquele momento, poderia ter percebido uma certa aptidão para a poesia, mas só estaria se enganando mais e mais. A quebra da linearidade da representação amorosa nos dá a vontade de nos expressar artisticamente. Fiz a poesia através do seu amor. Mas seu amor acabou. Deste fim, fiz a tragédia. Feito o bebê chorão que João não foi, e que, naquela quebra, renasceu e chorou tudo o que sempre deixou guardado. É mesmo terrível a sensação de se sentir despedaçado. De se sentir que nem um copo de vidro todo moído espalhado pelo chão. Ao mesmo tempo tão frágil e tão perigoso. Querendo ser recolhido e colado de volta, querendo ser recolhido e guardado entre papéis quentes e escuros - para depois ser descartado com o chorume e as latinhas de coca-cola -, querendo ficar caído para sempre com medo de ser cruel com as mãos que tentariam recuperá-lo. João prosseguiu - por mais que pareça difícil, sempre chega essa hora de pedir a si mesmo para que não olhe para trás. Novamente, suspeitou da idéia de ciclos. Sem saber que, já no primeiro flash de pensamento - aquele segundo em que as palavras e as idéias são tão abstratas que um pensamento pode ser facilmente confundido com um vazamento de massa encefálica -, ele estava certo. A vida é feia de ciclos. E você amou, ama, amará, alguém. E tudo sempre terminará naquele mesmo banheiro - como forma de dizer. E a cada vez parecerá ainda mais insuportável. E você, João, esteve sempre certo, chorar nunca resolve. E muitos ainda levam anos e anos pra descobrir uma coisa óbvia dessas. Se chorar resolvesse, só usaríamos lágrimas para controlar um incêndio. Eu sou você, João. E ele também. E ela também. E todos somos você, João. Por mais que sejamos orgulhos demais para admitir. Por mais que não sejamos tão fortes quanto. Ainda somos os indivíduos a passarem pelas mesmas situações, o mesmo - e egoísta - procedimento amoroso. E os mesmos ciclos da vida. Mas e a mais dura verdade, João? A verdade é que ninguém acredita no amor. Por quê alguém, em plena consciência, acreditaria? E ninguém, também, acredita em Deus. Por quê viver por algo que não podemos tocar? Não são pernas, nem terços, são coisas flutuantes, inodoras, invisíveis. Ninguém sabe a verdadeira textura que cobre toda a verbalização que é amar. Se "eu te amo" é mesmo vermelho ou em degradê, ninguém sabe. "De graça, até injeção na testa", acho que é pensando assim que tem gente que, às vezes, se apaixona. Nisto de acreditar no amor, eu prefiro mesmo é acreditar em Deus. Pelo menos dizem por aí que ele é brasileiro. Do amor eu não sei nem o nome.

Um comentário:

Anônimo disse...

deus não existe, mas incomoda bastante.