quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Céu Estrelado.

Sexta-feira, beirando o nascer-do-sol, quando enfileirou os livros no comprimento do corredor, deitou-se no piso frio da cozinha, apontou o nariz para o céu e disse: faz tempo que não olho para o teto. Depois reclamou das marcas de bolor, e cantarolou com experiência uma das mais antigas de Bethânia - era uma mesma música que cantarolava sempre ao sentir-se encarceirada ou doída. Faz tempo que não olho para o alto, e tentou puxar-me pelos pêlos da perna, como se esperasse que, com aquele sutil toque, eu me abaixasse para escutá-la mais de perto. Não pude não estar inquieto. Nem pude deixar de passar claramente isto a ela. De um lado para o outro, a sola arrastando no chão. Um barulho repetitivo, sem pausas. Dava a mesma agonia de unhas indo e voltando na lousa. De repente senti-me tal como o moleque de treze anos que fui e precisei deixar para trás. De repente senti-me degradado pelos tempos que atravessam as fibras, dermes, virtudes, e logo mais passam. De repente senti-me acuado, como se aqueles treze anos e a lembrança deles fossem responsáveis por um tremor nos dedos na hora de apertar o gatilho. Sem palavras, ela estava a dizer-me que iria embora. Sem ouví-las, aquelas palavras foram perturbando quaisquer resquícios de sanidade. O jardim era florido, até transformar-se em deserto. Das formosas pétalas de rosa, até o ensanguentado cactus. Pouparia-me do drama, mas nunca de suas analogias e metáforas. Descarrilhou, ponteiros pararam de girar, os passarinhos têm que voar...entende? Os cachos dela espremidos entre sua cabeça e o cheiro de lavanda do produto para o piso. O filtro dos sonhos na porta da cozinha, balançando com a previsão de chuva, e eu lembrando de quando ela voltava da rua carregando uma sacola em cada dedo, trazendo um incenso para cada sentimento, uma cor para cada som, dizendo que essa parada de signos é séria mesma, o rapaz das velas me explicou. Um par de olhos desejosos de enxergar todo o mundo de uma vez só. Ou pedaço por pedaço apenas exigindo muita concentração e calma. Mas ver e absorver tudo. Sentir de tudo. A brisa, as formiguinhas fazendo cócegas nos pés, o cheiro da lama. Sexta-feira, o corredor infestado de títulos e mais títulos, clássicos contemporâneos, marginais, ensaios. Sentado à mesa eu podia ver Schopenhauer, Hagel, um livro-ilustrado sobre flores, outro sobre mapas. Estava tudo desconstruído entre os cômodos. Todas as fases dela. De quando quis ser confeiteira, folheando o caderno de receitas da falecida avó. De quando começou o curso de Filosofia e logo transferiu-se para Arquitetura, estou apaixonada pelo gótico, e me arrastou por inúmeras bibliotecas. Estava ali toda ela. Umas fileiras sobre outras, dando mais de um de mim de altura. Ventou forte e poucos resistiram naquela formação que mal pude compreender a lógica. Assim como era. Inesperadamente formada, vezes frágil e facilmente abatida. Ainda assim nunca perdia o mistério ou o encanto. Nunca deixarei-te sozinho, nunca sinta-se assim, se acaso eu estiver ou parecer longe, fora da cidade, sem celular, e à sua volta as coisas parecerem sufocantes, é só pressionar seus joelhos contra o peito, de alguma forma você saberá que eu estive ali, e ali ficarei para sempre, um ventinho frio, calmo. Abusava das doses de sobriedade, ternura. Não que não sobrasse-lhe tempo para convulsões existenciais. Tinham uma frequência quase que semanal. Remexia-se pelo escritório. Fechando e abrindo as janelas sem nunca saber se seria calor ou frio. Ou nada. A paz pertencia-lhe, e mesmo assim, incomodava-lhe. Naquela Sexta, fui dormir, depois de achar ter escalado e vencido todos os morros em volta dela. Com calma, abri caminho entre os livros, sem saber que, ao amanhecer, não estariam mais lá. E que, em seu lugar, estaria um pequenino envelope:

Que tuas estrelas nunca se desgrudem do céu.

Nunca mais a vi.
Se não nos sonhos.
É lá que eles moram, não é mesmo?
No céu...
Entre as estrelas então.
Foi onde a vi.
Nunca desgrudei-a de mim.
Como foi-me pedido.

3 comentários:

Giselle disse...

Que fofo esse post. Um adeus tão cheio de ternura e saudade!!

Anah Luizahh' disse...

Um adeus confuso, cheio de ternura e saudade...

Natália Valle disse...

Meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor, meu amor... EU TE AMO MUITO!!!