quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Século XVII.

Acho que maior atestado de tristeza não existe: sonhava grande. Eu sonhava grande e queria dois continentes e você, senão logo o mundo inteiro e mais algumas galáxias. Para mim, todo romance precisava ser épico. Por isso eu seguraria suas mãos no meio de todas aquelas idas-e-vindas do aeroporto, ficaria de joelhos, e diria bate que é para ver se eu sinto alguma coisa de novo. Você me olharia, escandalizada, e tentaria escapar - apesar de saber que eu teria seus dedos muito bem presos aos meus. Com muito esforço, talvez conseguisse me arrastar contigo por dois centímetros e meio, esperançosa de minha desistência. Eu estaria intacto e persistente com meus olhos sérios e minha barba a fazer. Digno, como qualquer Romeu, Orfeu, Tristão ou Abelardo, nada me cessaria senão a certeza de possuir a mulher amada. Você olharia para os lados, preocupada, e diria para que conversássemos depois, pediria para que eu te deixasse ir, olharia meio-quem-vai-chorar-meio-quem-não-sabe-o-que-dizer. O que até me sensibilizaria um pouco - kryptonita nenhuma seria mais forte que seus olhos -, e afrouxaria minhas mãos. Você trapacearia e sairia apressada, pelo caminho ficariam suas lágrimas e um pouco do seu cheiro. Eu gritaria, é claro que eu gritaria. Eu gritaria seu nome e eu te amo e seu nome e me espera e seu nome e não me esquece e seu nome e fica por favor e seu nome e não faça isso comigo contigo conosco. E proporcional à minha raiva e decepção, eu amaldiçoaria todas as próximas vidas com minhas amarguradas palavras, e do céu viriam raios e trovões e chuva e pestes, e dos vidros viriam os venenos e os cortes e o sangue e os acidentes. Eu te deixaria escapar pelos dedos. Eu te deixaria escapar e passaria os próximos milênios me torturando. Deixaria crescer a barba e esbranquiçar a pele. Fumaria até pelos ouvidos: cigarros cachimbos charutos ópio cigarrilhas, qualquer cura que matasse. E pelas madrugadas, todo l'effet que tu me fais, tomando um - barril - de conhaque, ao som de Piaf, com a dona do mais vagabundo bordel da cidade. Eu te escreveria todos os dias, e todos os dias enviaria as cartas, que nunca chegariam à suas mãos. Eu lá iria saber quantas com seu nome existem por aí! Eu juraria estar vivendo no século dezesseis ou dezesssete, para ter a desculpa de estar sempre imundo, e viver com pouca luz, falando em latim, francês, ou no português arcaico. Eu teria muito tempo para ler, mas a minha preguiça limitaria meu tempo ao pensar: pensar em você pensar em você pensar em você. E ao lado da minha poltrona haveria um caixote, e em cima do caixote haveria sua foto, e ao lado da foto estariam dois dos meus melhores - senão únicos - amigos: o copo e a garrafa. Nós quatro ali seríamos uma família feliz, se não fosse a falta de ligações de sangue entre nós. Quer dizer, o copo e a garrafa de vez em quando seriam substituídos por outros semelhantes quando, depois de embriagado, eu os atirasse no chão e aliciasse seus cacos com meu corpo: aí teríamos sim uma ligação de sangue. Ou o conteúdo dos mesmos viajando por veias átrios órgãos: outra ligação. Ou o fato de que você circularia em mim mais do que oxigênio e me manteria muito mais do que vivo, sobre-vivo: mais uma ligação. É, poderia nos dizer família feliz. Mesmo que ainda subtraindo outros quesitos, entre eles: a própria felicidade. Passariam muitos anos. Tantos anos que, parte da minha memória teria esvaído, e sido substituída por sonhos - e alguns pesadelos - e estórias que teria lido. Eu me lembraria de você. É claro que eu me lembraria. Seus cabelos ruivos que eu acharia serem loiros. Seus olhos escuros que eu acharia serem claros. Eu e você aproveitando todo o frisson da Revolução Tecnológica beirando anos dois-mil, que eu acharia ter sido a Revolução Francesa, ou talvez o Iluminismo, mais para frente, só a Grande Depressão. Já tomado pelos males da idade: todos os males, todos. Sem nenhuma lucidez ou esperança, sentado na varanda, tomando alguns respingos de chuva e goles de teor alcólico alarmante, eu pensaria estar não passando por isso, e lembraria de quando era menino e teria rasgado sua saia, e sentiria estar vivendo tudo aquilo de novo: o êxtase do primeiro amor, que quem diria! seria eterno...

Um comentário:

Anônimo disse...

"...o êxtase do primeiro amor..." Li. E quase chorei.