quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Vidas Úmidas.

Eu não queria que fosse assim, foi o que dissemos um ao outro dez anos depois. Eu, calvo e trêmulo. Você, mais mulher e desconfiada. Foi aquela saudade. Meio amargurada, meio insossa. Meio sem saber se vai ou se fica. Meio curada, meio esperançosa. Meio nossa e de - mais - ninguém. É que, quando a gente vê - eu disse, com meus cinco graus e meio de miopia, parcialmente sanados por um par de lentes apoiados em uma armação falsificada -, a vida vai tomando vida própria, e a gente vai perdendo o controle. E o contato - você respondeu, inabalavelmente séria. Sua expressão era nova, realçava os relevos - também novos - em sua testa, de tanto a franzir - supus. Você sempre havia tido essa postura blasé, olhando a todos do alto, fumando seus Carltons Cremá e segurando o copo - por muitas vezes de plástico e roubado - com a elegância de quem segurava taças de cristal na cobertura do The Plaza. Mas sua pose não era mais um charme. Não me dava aquela vontade de arrumar um jeito qualquer que fosse de ir para a cama contigo e saborear, e raptar, qualquer outra expressão que você esboçasse. Em uma época, me lembro, você se acostumou a sorrir muito. Seu sorriso era enorme e, entre os espaços de seus dentes, era possível ver sua língua querendo sair, e seu coração querendo que eu entrasse. Foi justamente na época em que decidimos que tínhamos sido feitos para viver na esbórnia: todo dia em um lugar, todo sono em uma cama. Na verdade, não tínhamos sono, ou fome, ou qualquer outra dessas necessidades normais. Fumávamos, cheirávamos, bebíamos, queríamos - de - tudo e - de - todos. Parecíamos dois pupilos de anjos, tentando alçar vôo com asas que ainda não aguentavam nossos próprios pesos. Nisso, acabamos, é claro, um nos braços do outro. Primeiro, confusos. Depois, convencidos de que tudo-acontece-porque-tem-que-acontecer. A gente já se conhecia de muitas outras batalhas. Talvez por isso tenhamos nadado contra a maré em tão perfeita sintonia. Éramos extremamente novos, e corajosos também. Você, há pouco acostumada a sorrir, me esperava sempre com as gengivas e cáries à mostra. Tão bela e tão falha. De corpos e almas - suas pessoas eram várias - desnudas, como em uma pintura de Modigliani. Éramos extremante à flor da pele, como éramos, também, extremamente a flor e o espinho, a cruz e a espada. Não foi amor à primeira vista. Se foi, acho que não enxergamos estando lá em cima, nas nuvens, com todas aquelas ondas de delírio e soberba. Mas, uma hora, não sei com certeza qual, foi amor, e quando foi - e a gente enxergou -, foi com tudo. Com cinco dimensões e efeitos especiais. Não tínhamos como não sentir, e não deixar que fôssemos levados com ele. Por alguns momentos, eu sentia estar correndo por um campo de girassóis, para depois dormir ao relento. Por alguns momentos, eu sentia estar em profunda paz. Comigo, contigo, e com tudo mais que já nem existia conosco juntos. Você era o amor da minha vida, eu dizia. Eu dizia com o peito cheio de ar. Eu tenho o amor da minha vida. Pode não durar a vida inteira, pode acabar em dez minutos. Mas eu tenho. O amor dessa vida, eu tenho. Como era de se imaginar, não durou até o fim - fim que ainda nem chegou. Durou por toda a vida que vivemos ali. Durou por mais vidas até do que aquela propriamente dita - quando vai embora, a gente ainda vela, se cobre de luto, cobre com terra, enterra e chora. A gente segurou enquanto foi possível, enquanto só era preciso segurar de vez em quando, por segurança - funcionava enquanto fosse firme o suficiente para andar sem coleira. A gente segurou mas, como tudo, se desfragmentou, queimou, e o vento levou as mais leves cinzas. Ficaram algumas, as mais pesadas, as chamo de lembranças. Aquelas que carregamos em um vidro, no bolso, para jogar pelo mundo afora, sibilando, simulando, dissimulados, às vezes. Éramos extremamente jovens, mas algo em nossos espíritos nos tornara menos lúcidos, mais desgastados. Você, principalmente. Que era incapaz de se esconder junto à seu escuro, atrás da claridade de seus dentes. Você sempre me olhou com aquele seu olhar que nunca pude definir como nada além de olhar-completamente-seu. Levei algum tempo para ter - parcial - entendimento do que ele realmente queria me dizer. Você sempre me olhava. Você me olhava, e seu olhar me pedia ajuda, pedia pra que eu te tirasse daquilo tudo. Você falava - pela boca, e pelos próprios olhos - de anjos, demônios, e de se matar. Mas eu não tinha medo de que isso acontecesse. Eu nunca tive. Algo em mim dizia, quase que no fundo, que nem assim eu te perderia para sempre. Você era minha. E acho que sempre havia sido. E sempre haveria de ser. Minha como amiga, mulher, ou como memória. Minha como aquilo que não poderia nunca ser impedido, corrompido, ou extraviado. A gente não queria que fosse assim. Mas, mesmo sem querer, estávamos de acordo. Há tempos já sabíamos que nada mais daquilo existia. E que apenas flutuava na recordação de tempos e sentimentos distantes. Como vestígios de um naufrágio. No qual perdemos os tesouros e os brilhos, e ficaram apenas manchas nos porta-retratos afundados, para nos trazerem ao peito algumas batidas mais lentas e nostálgicas, e a sensação de choro e falta. Havia feito tanto tempo desde que havíamos feito tempo um ao outro. A sorte é que ainda nos lembrávamos daquilo que podíamos reconhecer. Era exata a forma como você soltava a fumaça. Era incerta a forma como você reagiria à minha aproximação. Mas não pude tolerar a distância quando encontrei o amor da minha vida, em uma das vidas que vieram depois.

Um comentário:

Natália Valle disse...

Nunca deixei um recado aqui pra você, né. Bom, você sabe o quanto te admiro, e me sinto lisonjeada por te ter por perto. Gosto do jeito que escreve, como usa as palavras, e acho que nunca te falei isso. Seus textos são incriveis, assim como você. Nunca deixe de escrever, tá? Tenho certeza que ainda vai muito longe fazendo isso que gosta. E no que eu puder ajudar, já sabe... Amo você orgulho da minha vida! Sempre, sempre e sempre.