domingo, 1 de novembro de 2009

Quinze Mil.

Nasceu meio sem querer, sem que quisessem. Criou-se meio sem ter como, sem ter quando. Sua vida fora, desde o começo, um arquivo aberto de obituários e acidentes. Vivia sempre acompanhada, e em especial, da solidão. Quando pequena, demorou a fazer de seus grunhidos alguma palavra. Quando um pouco mais crescida, as palavras que tinha feito, guardara para si. Via em cada dia que nascia, a oportunidade de morrer um pouco ao dormir. Gastou alguns de seus anos perguntando-se porque logo ela vivia em condições tão grotescas. Gastou outros imaginando se existia alguma outra pessoa no mundo vivendo da mesma forma. Não queria aceitar, estava só. Calada escondia-se na dispensa e chorava até adormecer. Com os anos, alguns foram embora, ainda alcançáveis no tempo. Com outros mais, os que foram, foram de vez. Sob olhares alheios disfarçava sua indignação com timidez. Não chegavam perto. Queria - sem querer - que chegassem. Já mais crescida, desaprendeu a chorar, não cabia mais na dispensa. Tinha ganhado corpo para aprender a defender-se. Usou-o mais para atacar. Batia portas, gritava. Não era violência, era falta de amor. Amor tinha sim, em segundo plano. Para que fosse amada, era preciso que fosse lembrada. Não era, a menos que fosse para ser exibida. Que cabelo sedoso, tão liso, tão claro. Que olhos meigos, tão míudos, tão expressivos. Um dia a vida mostrou uma possibilidade de mudança. Mudou, mudou, mudou. Para pior, como se fosse possível. Foi viver em outro lugar. Sem companhias, exceto a de sempre. Não havia dispensa, só a volta do choro. Não escondia mais. Chorava com raiva, como se cada lágrima fosse um tiro no coração. Acabou por descobrir, que chorar não adiantava, nem nunca adiantou. Inevitável, era chorar por dentro toda noite, por todas as madrugadas, enquanto fraca e cansada, desviava-se de uma garrafa, um prato, uma faca. Do lado de fora, parecia tão forte e inatingível. De fato era. Tinha tornado-se. Em algum momento de completo descaso, passou a achar justo descontar sua raiva na felicidade dos outros. Atraía. Encantava. Aproximava. Desaparecia. Achava divertido, quase engraçado. A dor que sentiam não era a mesma que ela conhecia, mas era alguma coisa. Quando foi enfrentada, desistiu parar. A dor tão dela, tão única, não era desculpa para dor nos outros. Outra vez a vida veio mostrar-lhe uma chance de mudança. Mudou, mudou, mudou. As palavras que tinha feito, resolveu colocar para fora. Colocou-as todas. Exatamente aqui.

Um comentário:

Raíra Cavalcanti disse...

Eu cheguei perto e juro que o encanto nunca foi embora.