sábado, 28 de janeiro de 2012

Me Arrependo.

"Eu não me arrependo de você,
cê não me devia maldizer assim...
Vi você crescer,
fiz você crescer,
vi cê me fazer crescer também.
Pra além de mim..."


Tem gente com medo de abelha, pensou, tentando justificar os motivos que levaram-na a sentir-se como sentia-se naquele momento - só, esquecida, castigada por uma força maior. Seu telefone não tocava, ou esboçava qualquer tipo de reação, há mais de dez dias. As únicas coisas que entravam no apartamento eram feixes de luz - permissivos demais - e acúmulos de poeira. Estava com medo de sorrir. Pela possibilidade de perder seus dentes em toda aquela bagunça. A solidão atrasa os limites da imaginação. Há tanto mundo na gente! Lembrou de uma frase dita por seu pai quando tentava acalmar seus ataques de pânico, suas fobias de gente. Não podia ligar para ele. Podava-se: não podia, sequer, pensar em pensar ligar para ele. Também não podia recorrer a sua mãe, que viajava despreocupadamente pelo interior do país. Se morresse, confabulava, só seria encontrada umas três semanas depois - isso com sorte. Que seria quando o síndico procuraria seus pais a respeito do atraso no pagamento do condomínio. Seu pai atenderia o telefone, e ao saber do motivo da ligação, bateria com os ombros, alegando não ter nada a ver com isso. Depois voltaria para sua poltrona, sua televisão de quarenta duas polegadas, e suas latas de cerveja. Numa propaganda de sabão em pó lembraria das roupas sujas que precisou lavar na casa da filha e que, por causa do tempo chuvoso, precisou deixar secando lá. Só então procuraria contatá-la. Obviamente, ela não atenderia. Três dias depois, dúzias de ligações não-retornadas, fariam com que ele caminhasse sete quarteirões até o apartamento. Depois de interfonar, e tocar a campainha, sem sucesso, tentaria abrir com a chave reserva que guardava. Havia esquecido de colocar junto ao molho com as tantas outras, e só percebera naquela situação. Arrombaria a porta, e lá estaria sua filha - a caçula entre quatro -, estirada, gélida, mortinha da silva. Mortinha da Silva! - exclamaria o zelador por todos os andares do prédio, nas semanas seguintes, contando sobre o acontecido. A imaginação desconhece seus próprios limites, por isso muitos acabam loucos sem nem saber o porquê. Concluiu, depois de criar, e quase encenar, sua própria morte. Eu estava pensando, viajando, comecei a acreditar nos meus pensamentos, e acabei acordando num corredor estreito, com dois usuários de heroína e um psicopata cheirando meu cabelo. Pensou que sua autobiografia ficaria suficientemente interessante se começada assim. Outra vez, mergulhava em si, alongando-se até tomar formas estranhas. Invadia espaços até então desconhecidos. Mas quem nunca planejou o próprio fim? Quem nunca acreditou ter pensado em algo único? Questionava, como se assim amenizasse sua imensidão disforme. Queria sentir-se normal, sabe? Sorrir como fazem por aí. Sem nem mesmo terem motivos reais. Apenas sorrir porque existem os dentes, existem os lábios, existe a boca, e está tudo disponível para isto. Chorava por horas mas, se pedissem, não saberia apontar de onde vinha tanta dor. Tanta vontade de largar tudo. De se desvencilhar de todos. Teve tudo enquanto criança. Um tanto mais do que era comum. Via os pais chorarem, os avós também, e achava que aquilo era só reflexo de como eles admiravam aquelas telenovelas. Levou lá suas décadas para perceber que corações respondem sim a toques. Abria caixas velhas e relia todas as cartas que havia guardado. Imaginou como teriam sido as coisas se ela sempre tivesse sabido reconhecer sentimentos. Legitimá-los, pensou. Pensou em todas as pessoas que deixou ir, sem nem importar-se. Como num retrato de turma, todos ressurgiram na parte imaginativa de sua íris. Lembrou-se, especialmente, de uma dessas paixões com cara de inigualável, e espírito universal. As coisas todas já foram tão simples. A caixa de correio dela desconhecia cobranças. O céu era sempre azul, raramente estremecia. As pessoas que amava estariam para sempre ali, sua inocência duraria também. Eu aprendi que coisas ruins acontecem com pessoas boas. Parou de sonhar, e foi responder uma das cartas antigas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro como você consegue conduzir teus textos, e também tua percepção de conseguir mostrar com tanta clareza o que é um sentimento em si, não levar em consideração sobre do que ele se trata. Só mergulhar de ponta. "Que nos engendramos em nós..."