terça-feira, 14 de setembro de 2010

Policronías.

Imagine-me agora: estou sentado na terceira fileira do ônibus, do lado esquerdo, no assento que dá para a janela, ao meu lado está uma senhora de idade caçando palavras. Eu deixei minha barba crescer e, quando viro a cabeça, ela consegue encostar na gola da camisa. Camisa que você me deu quando completei dezenove anos, e nós dois resolvemos vestir nossas mochilas e atravessar a América do Sul. Mesma camisa que eu usei em nossa primeira noite em Buenos Aires, quando fomos admirar a Casa Rosada, e eu lhe disse que a chamaria de Casa Salmão. E você, por todo o carinho, ainda riu, e eu ainda lembro até da risada: que começou no canto direito de seus lábios e terminou em gargalhadas com você montada em minhas costas. Passaram-se doze anos desde então, e a única coisa que peço é que imagine-me agora, no exato lugar em que estou. Não, não há nada de especial por aqui. Nada além do reflexo do sol nas sufocantes janelas, nada além das grávidas procurando uma posição confortável, nada além das crianças batendo com moedas nos ferros. Em questão de cinco ou dez minutos, eu pedirei licença para a senhora ao meu lado, e descerei do ônibus. Precisarei, ainda, atravessar o Eixão. Por cima, como fazíamos, correndo de mãos dadas entre os carros, gritando trechos de uma canção qualquer e fazendo gestos antipáticos para os motoristas. A gente viveu tão fechado em um mundinho-quatro-por-quatro que, quando saíamos, parecíamos dois gatos ariscos. Aquela nossa viagem, até que fez bem. Apesar dos maços a mais de cigarro, dos goles de café e cerveja batendo nas úlceras. Parecíamos até domesticados, não falávamos apenas um com o outro, não saíamos pelas ruas apenas um com o outro, não dormíamos mais apenas um com o outro. Mas não sei o que aconteceu, o mundo de repente pareceu assim tão grande, e a curiosidade pareceu assim tão imediata que, já não dormíamos um com o outro, não saíamos um com o outro, não falávamos um com o outro. E cada um com seu caminho, cada um com seu lado da estrada, você resolveu voltar, e eu quis continuar. Conheci mais, tanto mais, que não há nem espaço para guardar comigo. Contigo, aposto que aconteceram coisas ótimas e, pelo carinho, guardo a ti sem mágoas e com alguma folga. Agora, em questão de segundos, estarei de frente para o Eixão, apertando os olhos contra o sol para poder enxergar o momento. E o momento logo chega, e então eu atravesso. Fico parado no grau zero da saudade. Olho para um lado e vejo alguns ipês e meu prédio. Olho para o outro e vejo algumas mangueiras e seu prédio. Com uma quadra e alguns versos de distância: Es increíble pensar que hace doce años. Que nem eu li naquele poema de Cortázar. Do qual não gostou. Es increíble pensar que hace doce años: e ainda assim eu te gosto. De tudo em ti eu gosto. E de nada em ti eu esqueço.

3 comentários:

Anônimo disse...

Poxa, acho que eu senti uma certa semelhança em mim nesse seu conto...Perdi meu amor em Buenos Aires ou para Buenos Aires? Perguntas como respostas são simples que nen eu consigo ou nen quero enxergar...

Amei... Fico anciosa quero le sempre quando posta!!

Anônimo disse...

perder amores é o que há de mais normal nesse mundo, não se assuste. Ainda virão outros a se perder...

beta(m)xreis disse...

porra!