quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Caridade.

Das memórias que a vida deixou-me, a dela compreende a mais clara e dolorosa. Tu sabes, pelo pouco que sabes do mundo - e de mim -, que minha memória nunca fora lá essas coisas. Sempre confundiu-se com o branco, apresentou-se vaga. Mas a memória dela é latente. Recordo-me da primeira vez em que ela furtou-me um sorriso, e eu, bobo como era, não notei a perda. Recordo-me mais ainda da primeira vez em que ela forçou-me o choro. "Chore, homem. És fraco ou poeta?". Os dois, sussurrei. E chorei. Como chorei tantas outras vezes, por ser fraco, pela perda do poeta. Quando ela bateu a porta para nunca mais, eu permaneci sentado, atravessando séculos. Quando fui capaz de notar que ela havia tornado-se apenas memória, corri, incapaz de ir contra o tempo. Levei-me a desistência. A memória dela ainda é o aconchego de estar entre lençóis. Durmo só, pois nenhuma companhia sacia o que a dela deixou-me. Tu és extremamente calculada. Ela fora um terremoto a escapar de previsões. Tu és a calma. Ela fora a tempestade. Tu és abraço. Ela fora meus braços, meus fios de cabelo a arrepiarem-se. Poderia, nessa idade, viver apenas de memórias. Mas viveria apenas com a dela e com um espaço vazio. Tu aindas não tornou-se memória. Pergunto-me se um dia chegarás a tornar-se. Não prevejo abandono algum, minha cara. Não compreenda minhas palavras ao vento como punhais no ar. Respiras tão somente porque respirar és a ti indolor. Pois saiba que a mim dói. E essa mesma dor que trouxe teu corpo ao meu encaixe, e encaixou-nos com alguns remendos. Se um dia tu, por acaso, bateres aquela porta para nunca mais, juro que guardarei-te na lembrança. Junto aos souvenirs que carreguei do passado e exibo nas estantes. Tu serás feito a lembrança de um verão em uma praia quente, de uma viagem para outro continente. Tu serás uma forma sossegada do passado.

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