segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Pequenina.

É necessário sentir na pele a ardência febril do verão. Mas, por hora, o que acontece é um dilúvio. E está tudo branco, branco-acinzentado. Você só queria ser amada. É compreensível. Por isso as noites jogadas na sarjeta, as fotografias e roupas rasgadas, os tantos porres, os cacos de vidro. É tão torturante achar que não pertence à ninguém. E a sisudez no semblante em que se esconde só revela a tamanha fraqueza que suporta seus ossos e seu fôlego. Seus olhos famintos, atordoados. As rugas na testa rígida, mais pura tensão pré-parto, pré-partida. Você não esconde a preparação para o abandono, porque um dia te disseram que tudo vai embora, e irá, mas não há tempo para se martirizar por isso - sem que isso antes aconteça. O dia está passando nublado - sem intervalos de cor. O céu daqui costuma ser o mais lindo. Ninguém sabe o que está acontecendo. Chove na mata crescida. As gotas escorrem pelos jardins sem cores. Não há vida. E se há, onde foi parar? Se perdeu cruzando os Eixos, mirando o horizonte que, daqui, é finito. A gente não se entende mais, e dirigindo pela Avenida das Nações, não temos mais rumo. Entre tantos caminhos, não temos um rumo. No asfalto, as cores do inundamento. É terra que vira lama, é lágrima que vira chuva. E você, pequenina, que não sabe nem por onde veio, nem por onde passou. Não foi pelos becos, não há becos. Nem atravessou as esquinas, nunca existiram esquinas. Não nos nossos Planos. Não aqui onde somos pilotos. Pilotos desse avião desregulado, desamparado. Com um peso enorme por volta das asas. Ainda somos jovens e por isso gritamos. Gritamos sem que haja motivo, não devemos nada. Você que carrega essa mágoa inconfundível. Que é dona dessa beleza incompreensível. Você que me olha agora, logo eu que sempre fui desiludido. Não há nada a ser feito, ninguém pode te amparar. Não há nesse nosso jeito nada que nos explique por quê não há mar. Acendemos um cigarro, você diz que estamos nos matando. Eu acendo uma luz na sua vida, você diz que estou te cegando. O quê tanto você quer, pequenina? Que ninguém parece capaz de dar. Não sei se é um coração para chamar de seu ou um colo para quando desabar o céu. Já está tarde demais, a chuva está caindo lá fora. E pelos vidros podemos escutar o barulho do vento. E nada te acalma, nada de aquieta. Ninguém nunca disse que seria fácil, contudo, poderia ser ainda mais difícil. É quase um masoquismo tentar se manter vivo. Mas tentemos, pequenina, tentemos. Porque, querendo ou não, e mesmo sem saber o caminho, estamos juntos. Sou eu aqui contigo. O colarinho da camisa me enforca, e eu faço círculos em volta do meu pescoço. Estou me degolando para continuar vivo. Que tortura essa que não tem nome. Você é tão transparente que é possível enxergar as águas do lago se movimentando por detrás de você. E é possível ver seu sangue escorrer, e cair nos buracos, e escoar pelo esgoto. Todas as suas dores estão indo embora com a água da chuva, todas as suas mágoas e rancores. Quem sabe, assim, você não melhore, e sobreviver até pareça mais fácil. É tão inconsequente caminhar pelas noites sozinho. Ainda mais você, que é tão atraente e frágil. Ainda mais você, que quase se entrega à menor demonstração de carinho. Você só queria, e só quer, ser amada. Mas exige tanta vontade se manter nos Eixos. E há tanta gente do lado de fora, tanta gente que não vale um tostão, quanto mais um sorriso seu. Eu adoraria ganhar seu primeiro sorriso, pequenina. Porque, pela dureza de seus lábios, eu posso ver que você não sorri há muito tempo. Sentir o vento frio bater nos dentes é algo tão renovador. Ver os lábios quase congelarem, e se tornarem cada vez mais arroxeados. E sentir na contração das bochechas, no alongamento dos lábios, aquela pequena linha que divide o lábio inferior em duas partes - uma mais tentadora que a outra -, rasgar e jorrar sangue, é algo tão saboroso. Eu limpo seu sangue na minha boca, que já está roxa demais, que já está sedenta pela sua demais, que já está desejosa demais. Você só queria ser amada, pequenina. Mas será se seu pescoço dói tanto assim à ponto de não conseguir olhar para os lados?

6 comentários:

Anônimo minado disse...

Você, pequenina, se tornou grandiosa ao escrever o texto. E as lágrimas caídas misturaram-se com as gotas das chuvas. Podemos ver, agora, o quanto uma lágrima é pequena, se comparada ao choro dos céus.

Julianna Motter disse...

Eu, pequenina, me tornei ainda menor ao escrever esse texto. E as lágrimas caídas misturam-se com outras gotas de lágrimas e de chuva. Posso ver, agora, o quanto somos pequenos se comparados aos céus.

Anõnimo minado disse...

Ou isso.

Julianna Motter disse...

Os dois!

Uila Gabriela disse...

Uma mistura gostosa da delicadeza de Cora Coralina e a concretude brasiliende de Nicolas Behr.
Parabés pequenina! Tornar-te-ás grande!


Saudações novas =)

Julianna Motter disse...

Oras, muito obrigada!