quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Jasmim.

Acordei e segui como seguem os mortais. E quis te escrever pois, há tempo, não te escrevo. Eu tentei recordar do seu rosto, mas só me restaram as sombras e alguns contornos. E a cor de seus cabelos. Sua cor de fogo. Acordei atrasado, como de costume. Só tomei um café, um resquício de café que havia restado da semana passada. Quando eu ainda tinha alguém para me servir de quitutes e amores. Apalpei a cama, coberta por morros de edredons, em busca de algum corpo que eu pudesse ter esquecido por lá. Não havia corpo algum. Conquistei, com a pressa, uma dor de cabeça de deixar tonto. E por muito tempo eu ainda caminhei exalando o cheiro de ressaca. O sol estava aos berros do lado de fora de meu apartamento. E de repente, eu percebi que havia escolhido o traje errado. Da última vez que nos falamos, eu estava vivendo com uma mulher mais velha, e você queria combinar uma ida ao cinema. Eu não pude, e senti muito. Porque não inventei uma desculpa esfarrapada, muito pelo contrário, eu fui o mais sincero que pude. Você ou ela, simples assim. Foi a escolha que ela me impôs. E você, retrato em preto e branco do passado, ainda que fosse capaz de me puxar sem levantar um dedo sequer, já era uma intrusa conhecida por meus anticorpos. E ela era o novo, com alguns fios de cabelo grisalhos, mas o novo. A aventura com ela durou, mais do que a minha com você. Não foram muitos os anos, mas foram muitos os momentos. Lembro-me dela com mais clareza, não pela pouca distância de tempo. Mas porque foi céu aberto, sem pancadas de chuva - ou pancadas de outra natureza. Você sempre foi o inesperado. O meu inesperado. Minha bonequinha russa que se abria e tomava diferentes formas e tamanhos. Eu peguei o carro e dirigi até o trabalho. Da maneira mais simples que poderia ser. Eu não tenho que te contar dos detalhes, como o pneu furado e as barras da calça sujas de lama. Também não tenho que te contar que cheguei no escritório e a primeira coisa que abri foi o zíper da saia de uma mulher. Na verdade, eu não tenho que te contar nada. Mas te escrevo, porque você é meu único segredo. Eu nunca te contei para ninguém. Você dizia que fazia bem, afastar os olhares invejosos. E eu sei que todos nos invejariam. Porque tudo parecia uma maravilha. E foi maravilhoso. Na hora do almoço eu parti sozinho. Acho que eu queria que sentissem pena de mim. Pois lá estava eu, calado, enquanto todos conversavam e gesticulavam em demasia. Lembrei-me dela, a que não você. De uma tarde que passamos no parque. Não lembro o que fizemos, mas foi algo compatível ao nada. E foi um dos nossos melhores momentos. E eu consigo lembrar exatamente do rosto dela. Que brilhava mais com a luz do sol. Dos olhos dela, que ficavam menores a cada vez que diminuía a sombra. Eu quis que vocês se conhecessem. Mas ela tinha medo. Ela tinha medo porque achava que você exercia sobre mim um poder inagualável. E, até hoje, eu não sei se ela estava realmente certa. Um poder ou um encanto. Qualquer coisa assim, diferente. Ela morria de ciúmes toda vez que eu citava seu nome. Vinha me dizer que meus olhos tomavam um brilho único, e que meu corpo parecia mais resistente. Ela sempre soube que eu te amei de verdade. Coisa que eu só deixei que você soubesse tempos depois de ter partido. Quando eu, mesmo sem fôlego, corri atrás de você. Persegui sua sombra. É de um espanto enorme saber que faz tanto tempo. E que se nos cruzássemos na rua, as chances de reconhecimento seriam mínimas. Eu voltei para o trabalho, e mesmo não movendo um milímetro, eu me sentia tão cansado. Mas o dia estava bonito. Dava para ver da janela uns mil gramados. Todos bem verdes. Tem chovido por aqui. Pelo menos uma vez ao dia. E a água cai com tamanha vontade que não dá para se esconder dela. Eu preciso te contar, conheci uma mulher que me lembra muito de você. Mas uma versão mais esclarecida. Mas juro, a voz é a mesma. E também o sorriso. Eu enlouqueci de amores por ela, no primeiro minuto. E pensei em largar tudo. Era minha segunda chance de te ter. Nunca me senti tão egoísta. Ela não era você. E apesar da semelhança, eu não tinha motivos o suficiente para dar meu amor a ela. Amá-la por ser quem ela não era. Saímos umas vezes depois. E eu descobri, por detrás de um semblante que eu jurava ser seu, um amor só dela. Mas era um amor platônico. Que não tinha futuro, nada além dos minutos que passássemos juntos, e as juras que sussurrássemos através do telefone. Ela vivia com outro homem. No qual eu não vi nada de muito especial. Ela me enlouqueceu, me adoeceu. Vivemos um romance secreto. Que não durou muito, porque, para ela, não era nada tão grande. Era só um adultério, um crime com armas vermelhas - a cor da paixão, não do sangue. Ainda nos encontramos, de vez em quando. Para partilharmos nosso suor. E para que eu possa sofrer mais um pouco. Visto que é a única maneira de manter nós dois vivos no meu coração. Eu penso nela com frequência, como penso na outra, e em você. Eu já tive muitas mulheres nessa vida. Muitas que hoje são só uma vaga lembrança. Eu tenho um apreço doentio pela perda, pelo sofrimento. Você foi apenas a primeira a reparar nisso. A vivenciar minha loucura. Minha sede de conquistas. Minha coleção de abandonos. Eu amadureci muito. Percebi quando fui tomar um café, no meio do expediente e me peguei, pela primeira vez, não invejando os homens que reconquistaram todas vocês. Eu tive meus dias de sorte. Minhas pétalas de ouro. Meus tão enormes amores que puderam correr soltos. Eu sinto saudades. De uma forma inocente. Santificada. Eu as tornei inalcançáveis, distantes, mágicas, para sanar minha procura de motivos para não tê-las mais. Nunca mais. Nenhuma. Voltei para casa, em meio a despedida do sol. Misturei um café com um maço de cigarros. Café que eu mesmo fiz, se tornou imprescindível e urgente aprender a me virar sozinho. Darei conta, eu acho. Logo, logo, irei dormir. Estou meio embriagado. Começo a me preocupar, o café não deu muito certo, faltou água. Troquei por uma garrafa antiga de whisky. Uma que você mesma me deu. Eu nunca havia tido coragem para abrir, até hoje. Eu precisava te escrever porque sinto falta de conversar contigo. Por enquanto, digo ser só isso. Você não precisa de mais de mim. Você sequer precisa de mim. Enquanto eu, eu te encontro nos lugares mais improváveis, como nos botões das flores de jasmim, nos olhos de outra amada.

2 comentários:

Bárbara Gontijo disse...

Me lembrou essa poema do Neruda:

Por ti junto aos jardins recém-enflorados me doem os perfumes de primavera.
Esqueci teu rosto, não recordo de tuas mãos, de como beijavam teus lábios?
Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques, as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, esqueci de teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente.
Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios.
Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas.
Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.


Um amor, o nome.

Julianna Motter disse...

Neruda lindo lindo lindo lindo!