quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Inconsistência.

A melodia começa lenta. E algumas batidas mais fortes vão entrando pelos ouvidos. Tentamos não concentrar em cada fragmento da música, pois não entendemos os acordes. E como dois seres dissonantes e discordantes, destoamos. Destoamos do quadro no qual estamos pintados. Duas figuras caricatas. No ofício de dois amantes. Que não mais se amam, mas ainda se embolam e se enrolam no chiar do disco. Nos agudos das vozes cantantes. E no grave, no gravíssimo tom, do viver. Porque estamos setenciados um ao outro. Feito pagássemos pena de prisão perpétua. Pelo crime que cometemos ao estendermos aos mãos e nos entregarmos. Não faz muito tempo desde que te conheci. E vice-versa. Ao avesso, sabemos muito bem quem somos. Ainda nos perdemos na confusão das mutações corriqueiras do cotidiano. Na qual um de nós sai de casa bem-humorado, e volta sedento por desgosto. Nós passamos a nos desgostar tanto com o passar das horas. Porque o tempo que sobra, falta para cuidarmos de nós. E se tornam cada vez mais mal-feitas as declarações, as transas, as barbas. E enquanto fumamos o último cigarro do dia, prolongamos a noite para devastar cada mais o que restou. O que antes era um campo verde e florido, e que agora é uma área de risco, prestes a um soterramento. Temos tanta coisa para derrubar, desmanchar, desabar. Desabamos em lágrimas, porque os gritos ecoam e fogem. E nada cura. Já que não há nada para ser curado. São pequenas frestas de dor, que marcam nossos rostos iluminados, pela luz do poste que atravessa a janela. Nas noites escuras em que nem uma alma viva sequer caminha pela rua. Que nem uma alma sequer se aproxima do estado de transe que atingimos. Ficamos vermelhos, à ponto de explodir, à ponto de ebulição, à ponto de violência, mas nos contemos. Nos contemos porque eu não ousaria colocar minha mão no seu rosto a não ser que fosse para um carinho. Não ousaria passar minha mão em seu contorno a não ser que fosse para tatear nosso amor. Ele, que deve ainda estar escondido por aí. Em algum espaço entre as suas curvas. Em algum espaço de tempo que se perdeu. Porque ninguém acreditaria se disséssemos que acabou assim. Que ninguém viu quando, nem como, mas que sumiu. Feito um fantasma. Um amor invisível e fugitivo. Com a habilidade de um samurai. E ninguém acreditaria se ouvisse quando eu te digo que penso em outras. Que penso em outra. Uma em especial. Que ficou no passado, antes de você. Você que foi a maior de todas. Ela, que me deixou com a sede de mais. Mesmo que amores não se misturem. Amores não se misturam. Mesmo qualquer coisa. Eu tenho pensado nela, talvez pelo desgaste em nós. Talvez porque ela fosse menos abalo sísmico, como você é. Talvez porque ela me apresentasse um colo quente e a certeza de mesa posta, independente do cheiro que eu carregasse na gola da minha camisa. Você me confunde demais, você é por demais intensa e inesperada. E, até, desesperada. Esse seu desespero para encontrar respostas. Coisa que nunca fiz questão. Pois tudo começou como uma aventura, pois você era a mais bela e inconsequente, e tínhamos tudo para viver a boêmia juntos de mão dadas. E de repente você virou uma neurótica, quase psicótica, com tendências homicidas. E eu fui enlouquecendo junto com sua loucura. E eu tenho pensado mesmo nela. Que me ligou na semana passada, para elogiar a crítica que escrevi para um jornal. Para dizer que eu pareço muito mais amadurecido, e que ela adoraria me encontrar qualquer hora dessas para dividir uma garrafa de cerveja. Mal sabe ela que eu regredi na minha maturidade e hoje sou um menininho assustado. Porque não sabia que uma mulher só poderia tomar forma de tantas outras, hora doces, hora maquiavélicas. Uma mulher que não gosta de cerveja, e que resiste, resiste mesmo, ainda que uma provinha só fosse me fazer mais feliz. Ou menos indigesto em ter que seguir, em ter que seguir uma linha que não me avisaram que viria. Você tem pensado em outros também. Por ser um vuracão avassalador que rouba todos os olhares que saem pelas ruas. Que te seguem. Você dita as rotas, e todos seguem. E eu não sei como logo eu te consegui. Vai ver só eu te aguentei. Porque parece tão calma e, ao mesmo tempo, tão forte. E mesmo que intimide, isso atrai. E mesmo que atraia, também repele. Porque ninguém se julga capaz de carregar a responsabilidade de ser seu. O preço é muito mais alto do que o estipulado. Estou pensando nela, e você está pensando em outros. Eu pensando na que perdi para te ter. E você pensando nos que está perdendo para estar comigo. E nós dois pensando até onde isso vale à pena. Eu tenho lido muitos livros de auto-ajuda, parecendo cada vez mais incapaz de andar com meus próprios pés. A maior chance que a vida tem de vingar se concentra na aceitação de que é possível viver sozinho. Você sabia disso? Nem eu. Eu cheguei à essa conclusão por pensamentos próprios. A gente pensa que é indispensável apoiar a vida na de outra pessoa para seguirmos vivendo. Mas não é isso, não é nada disso. É preciso entender que estamos sós, apesar de qualquer companhia. Porque é a única certeza que temos: de termos sempre a si mesmos. Não levando em conta os acessos de loucura no qual não sabemos mais quem somos e não sabemos para onde fomos. Eu sei, agora, que eu preciso me aceitar como sou: sozinho. E que, também, preciso de um amor azul, para que seja sereno. Eu sempre soube que seria muito fácil te amar, pois você era o mais amável dos seres. Mais que os coelhinhos e os recém-nascidos. Você era dona de um encanto de desencontrar qualquer um. Mas a vida nos surpreende das maneiras mais violentas e obscuras. Eu não te procurava quando te encontrei. Aliás, eu não procurava por nada, estava me dando por satisfeito vivendo em uma panela morna com uma mulher que poderia muito bem ser a mãe de todos os meus filhos - isso se um dia eu resolvesse os ter. Mas acasos por acasos e estantes desorganizadas, você esteve ali. Bem na minha frente, em um momento em que, se eu mesmo pudesse, não estaria. E ali se deu o encontro que resultou nessa história de amor caótica que vivemos. Um romance que perdeu toda a feição apaixonada e histérica. Os suspiros e os gemidos. Um romance que preferiu seguir por linhas trêmulas escritas por um autor que não se sabe se sofre de Parkinson ou de Alzheimer. Porque foram tantos os detalhes esquecidos. Visto que o esquecimento, dado certo momento, pareceu a mais sábia de todas as escolhas. Porque era dolorido nos rever passando na televisão. Nos escrever com todos os acentos, e travessões, e travessuras. Travessos, isso que éramos. Como dois moleques se aventurando na mata ciliar de um rio, seguindo até uma cachoeira, até o alto dela, e pulando. Pulando como se não houvesse amanhã, com uma inconsequência majestosa. Pelo puro sabor da beleza já não tão pura assim. Porque havia o passado, e dele, ainda restavam os resquícios. E nunca nos perguntamos até que ponto aqueles resquícios, aquelas pequenas cinzas, estavam acesas para queimarmos um ao outro. Nunca nos perguntamos nada, por preferir o silêncio a qualquer crise de ciúme. Eu fumo meu cigarro com a sensatez de um homem transparente, incolor. Chegada certa idade, e certo nível de sufocamento, já não temos motivos para esconder mais nada. E eu, que me escondi por detrás da sua loucura e de seus espasmos, agora me sinto livre para te dizer. Dizer que te amei percorrendo todos os traços de sua loucura, que sempre me foi clara e sincera, até chegar na parte mais frágil de ti. E te amo, ainda mais, agora. Certo de que um dia nos reencontraremos. Não para sermos enfim feitos um para o outro. Mas para sermos mais fortes e não nos arrastarmos com uma brisa qualquer que levante um pedaço de roupa qualquer. Para sermos adultos o suficiente e conseguirmos nos olhar nos olhos dizendo limpo e claramente: eu aguento viver sozinho, e flutuar contigo.

Um comentário:

Marina disse...

Nossa, esse texto está maravilhoso. Traduziu muita coisa do que tenho sentido esses dias...
Parabéns de novo, sua linda!
(Decidi comentar aqui tbm, porque fica mais eterno que numa timeline do twitter, né) (: