sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

La Solitudine.

Eu havia acabado de me mudar para Lisboa na época. Eu não só era jovem e corajoso, eu era valente e liberto. Não existiam correntes ou pregos: nenhum metal, nada que contesse ou machucasse. Cheguei lá vestindo uns trapos nos meus um metro e não-lembro-quanto. Garoto-quase-homem de olhos cor-de-mel, cabelos castanhos, destoando, de nariz e bochechas vermelhas, naquele frio de me-abraça-e-me-bota-para-dormir. Não levei muito dinheiro - naquela idade, quem levaria? Quero dizer, talvez uns ou outros, mas não fui criado para ser Doutor - seja lá o que isso, hoje, signifique. Não levei muitas lembranças, memórias ou nostalgias, não queria sobrecarregar meu peito que, mesmo jovem, já chiava e doía. Juntei economias, quebrei alguns porquinhos e narizes e fui. Fui usando daquela teoria do band-aid: arranca-rápido-que-não-dói. Achei que tivesse funcionado. Por muito tempo, realmente achei. Procurei casa, emprego, um bom livro para me salvar. Fui encontrando a tudo - e a mim - aos poucos. Indo e voltando por entre as Sete Colinas: eu vi de tudo. Cada coisa é feita de uma porção de outras coisas, percebi. Percebi que cada uma das coisas - as que vi e as que viria a ver - era feita de extravagâncias e mistérios. Indo sozinho, voltando acompanhando. E indo acompanhado, e voltando sozinho. Fiz bons amigos, boas mulheres: fiz boas histórias. Cheguei naquele ponto em que olhei para a vida, achei que fosse maré, e disse: pode me levar, leva que eu vou. Foi feito um deslize na neve: fluído e macio. Posso dizer até que, no meio daquilo tudo, me encontrei. Aliás, me descobri. Me descobri perdido. O que fez do encontro, um encontro de gala, com direito a valsa e gravata borboleta. Passei mais da metade daqueles anos sofrendo de tonturas ou náuseas e, havia em mim um espiritualidade desconhecida, que me dizia que eu estava apenas colocando tudo para fora. Eu devia mesmo era ter guardado todas as garrafas, e cinzas, e cápsulas, e seringas. Eu me encontrei no meio de um estado de insanidade aguda. Não conseguia enxergar meus braços por debaixo de todas aquelas marcas, ou meus olhos por debaixo de toda aquela solidão-tristeza-insônia. Eu não pensava. E aquilo me parecia felicidade. Não que eu tivesse atingido o nirvana. Eu só havia notado que me corroendo por dentro o dano seria maior do que me corroendo por fora. Um dia, deitado sobre gramado de frente para a Torre de Belém, olhando meio torto para o braço de mar-rio-água-sei-lá, o sol foi encoberto por uma nuvem. Uma nuvem que não era mesmo nuvem, mas que era branca como tal. Branca que nem nuvem e que nem neve. O que não podia ser, porque só eu estava de cabeça para baixo. E a nuvem sorriu pra mim. A nuvem sorriu pra mim! E em meio àquelas alucinações-sensações-tentações, eu enxerguei vinte dentes. Vinte, e eu tive tempo de olhar a analisar cada um deles antes de me colocar de pé e pensar porra-tô-pensando! E olhei aqueles esvoaçantes cabelos envolvendo o rosto da nuvem: de cor tão inflamável. Qualquer coisa boba ou infantil me veio à cabeça, menos que pudesse estar correndo perigo. Aquela mesma espiritualidade tomou conta de me dizer que estava tudo bem. Esteve tudo bem à partir daquele momento. Pensei em mim como um homem ensandecido falando com seres inanimados: convencionalmente ou não, a minha nuvem me respondia. Chegou perto para elogiar a tristeza escrita em meus melados olhos. Perto este, que não foi o suficiente. A gente diz por aí que não se entrega assim tão fácil, mas a verdade é que só admitimos a entrega como feita quando enxergamos as mãos abertas do destinatário. É bem provável que eu já soubesse disso: não teria sido a primeira, e não seria nunca a última. Ou sei lá, quem sabe. O que mais importa são os momentos que vieram depois: sangue pulsando tóxicos, léxicos, Méxicos: Deus me livre! mas não era alucinação! Sei falar mais sobre os detalhes dela como nuvem do que como mulher: lá do alto, e bem de longe, era sombra, chuva, proteção, consolo, inalcançável, desejável. A gente olha e pensa: algodão-doce, e leva anos que ninguém sabe para descobrir qual realmente é o sabor. E a textura, e a maciez, e a temperatura. Mordendo os lábios, a gente olha para ela lá do outro lado e, fingindo estar em segundo plano, sonha com o dia do contato. Tendo me recuperado do estado alucinógeno-sensacional-tentador, eu pude enxergar e relembrar com maior clareza: seu nome eu não preciso citar, nem seu tamanho, nem a cor de seus olhos - amentolados, por acaso -, mas era mulher. Não exatamente daquelas que quebram pescoços e corações pelas ruas. Mas daquelas que conseguem fazer com que você mergulhe em qualquer probabilidade de futuro que venham a oferecer. Ainda a chamo de nuvem - pois sei que ela não me escuta -, porque não pude pensar em mais nada que pudesse substituir ou valorizar aquela visão. E porque, mesmo liberto de todos os espasmos imaginários, ela tinha tudo para realmente ter sido aquele pedaço de paz flutuante. Sua sombra há dois passos, mas ela ainda distante. Não sei bem o que aconteceu entre nós: às vezes parecia algo que se proíbia de ser definido. Eu sei que eu olhava para ela e, da mesma forma, ela olhava de volta. Existia reciprocidade naquela incompreensão de sentimentos e secreções - tudo muito encolhido e secreto. E existia uma facilidade em ser - ainda que não soubéssemos nem o quê. Eu a conheci da melhor forma que pude: de pernas para o alto, fumando um cigarro, dando petelecos nas formigas. Vai ver foi essa minha infantilidade em estar ali, e naquele momento, que a trouxe para perto. Mais velho ela soube que eu não era: era garoto-quase-homem, de olhos maduros, e boca também. Como frutos, como frutos belos e maduros, só que acabados de cair do pé, com dois riscos enérgicos: apodrecerem no chão, ou serem apanhados e mordidos. Ela apanhou, sem querer. Apanhou e quis morder. Mordeu e, sem querer, arrancou o mais pesado dos pedaços: a polpa, o pulso. Sei lá como ou por quê, mas foi preciso uma distância, uma distância maior que o céu. Eu a conheci na minha melhor forma para ela: abandonado. Ela olhava lá de cima e lá de longe. Mas uma hora a gente tem que seguir. Foi quando embarquei para a Itália: homem-já-não-tão-garoto de olhos cor-de-mel, cabelos castanhos, destoando, de nariz e bochechas vermelhas, naquele frio de me-abraça-que-ainda-não-te-esqueci. Nos correspondíamos por cartas, cartões-postais e guardanapos. Correspondíamos aquele nosso sentimento provisório com poemas. Eu me lembrava de um de seus pedidos, meio risonho, em tom de azul-bebê e brincadeira, e em uma de nossas correspondências o obedeci: e essa bolinha de neve, com a cidade - e comigo - dentro, para ser o que você quiser, uma agenda, um diário, um livro de receitas ou uma história de amor. Uma de nossas correspondências, que não cheguei a enviar. A gente guarda as melhores coisas para não perdermos a melhor das reações: aquele beijo que vem seguinte ao encontro. Ou reencontro de quem se achou, e que achou que nunca iria se encontrar. Distanze enormi sembrano dividerci, ma il cuore batte forte dentro me: os segredos que guardamos esperando - no fundo - serem descobertos. Ti prego aspettami perché, eu mesmo quero entregar estes segredos para você.

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