terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Dedicatória.

Há quarenta e cinco anos te esqueci - nem essa idade eu tenho. Não achei nenhuma forma outra de te dizer: nunca te amei, nem nada. Nem nada, nem um respigo de carinho ou vontade de te roubar um beijo e acariciar as voltas dos seus seios. Eu precisei te dizer isso agora, mas seria o mesmo de te dizer depois. Eu te peço para me esquecer, então não insista. Talvez eu precise de você daqui quarenta e cinco anos, quando eu estiver pesado demais para me apoiar na bengala, e pesado demais para me segurar nessa vida sozinho. Nossa história foi só uma boa foda. Boa porque tentamos sem parar e só você pareceu sair com a cara de quem acaba de ser fodida. E eu não posso dizer que me arrependo, porque tirei algum proveito do seu choro. E você me deixou um pouco mais de loucura. É a loucura que sempre fica, não sei se você sabe. Com os anos os amigos-amores-amantes-sonhos vão indo embora. E ficamos loucos, e também cinzentos. Eu quis a loucura de te ter somente para poder te perder. E me afundar nos cacos de vidro, e nos vidros inteiros, e em poças de lágrimas, lama e etílicos. Eu te tive só para te ver indo embora. E eu soube usar de todas as palavras, e serviu, até mesmo, o silêncio. Eu falava e você me tapava a boca com um beijo. Eu me calava e você me enchia os ouvidos com gemidos. Eu queria ter sentido saudades, para me livrar um pouco dessa crueldade que agora te revelo. Eu sinto alguma falta, se isso te consola: eu sinto falta de te fazer falta. E de receber suas ligações ébrias e descontroladas em plena madrugada, enquanto eu dormia do outro lado da cidade, com alguém do mesmo sexo, ou do mesmo nível. E te dizia que estava lendo Cortázar, tomando um vinho, fumando cigarro, e te dizia para ficar calma, e parar de gritar, e você escutava barulhos, e dizia que eram vozes, e eu dizia que era a televisão, e na verdade eram gemidos, e você me perguntava: mas você não estava lendo um livro? E eu dizia que estava me sentindo só, e o som das vozes me acalmava. Você dizia que pegaria um táxi e estaria comigo em dez minutos, e eu dizia não estar muito bem, e se acalma que estou indo deitar. E você aparecia faltando vinte minutos para as seis, preocupadíssima, e eu não atendia o interfone, e você me ligava treze vezes, e enfim eu acordava e te dizia que estava no hospital, mas se acalma que é só um resfriado e eu já estou voltando para casa, me espera, me espera, ainda não vá embora. Eu não queria que você fosse embora, eu nunca queria que você fosse embora se eu não pudesse estar aqui para assistir. Não sei, mas às vezes achava que você fosse um pouco louca demais para o meu gosto, e eu até gostava de pensar nisso, me dava uma vontade de me apaixonar por sua loucura, pelo menos por ela. Porque eu não conseguia ver nada de belo em seus traços, infantis demais para mim. E eu não conseguia aturar por muito tempo sua voz, doce demais. Eu te achava meio enjoativa, acima de tudo. E eu não conseguia lidar com a idéia de te ter sempre grudada comigo, então eu te dava férias - e à mim - e te soltava um pouco, e falava vá ver o mundo que isso aqui é só um quarto. Mas você não se soltava. E me batia um desespero por não saber o que seria da sua vida sem mim. Por não saber o que seria da sua vida depois de mim. Presunçoso, mas acho que as vidas são demarcadas assim: a.M. e d.M., antes de Mim e depois de Mim. Eu sempre em maiúsculo, porque sou eu quem escrevo as histórias. Sou eu quem faz a mocinha e o vilão. E sou realista portanto, em minhas histórias, não há um final feliz. Em compensação, são vários os clímax, vários, as histórias são todas clímax: a revolta, o tiro, o suicídio, o estupro, a paixão, a perda. Eu te dei alguma felicidade, espero. Porque duvido que alguém soube como lamber tão firmemente suas pernas, ou como recitar tão fielmente Drummond. E eu te coloquei inúmeras vezes para dormir junto aos pêlos de meu peito. E ali não haveria lugar nenhum tão seguro. E eu dividi contigo minhas melhores garrafas de vinho, e minhas melhores piadas, e meus maiores sorrisos. Acho que sou um pouco grato. Por tudo, minha querida, obrigado. Você se tornou o melhor dos meus romances. O romance no qual eu mais acreditei. Eu poderia ter jurado de pés juntos, e subido uma escadaria de joelhos, por isso tudo, e por nós, porque eu realmente acreditei. Seu romance terá nome de mulher, talvez o chamarei de "Helena", por ser assim tão forte. E eu dormirei com ele apoiado na cabeceira, para eu me sentir seguro. Porque isso eu posso dizer que você fez. Acho que foi seu olhar seu calmo e tão, falsamente, maduro. Eu me sentia um homem barrigudo balançando na rede, na varanda de uma chácara distante, com um visual verde e sadio posando à minha frente. Acho que com essa sensação é que veio o bloqueio: eu queria ser o homem vistoso caminhando com um facão pelo meio da mata, e você atrás de mim, se sentindo protegida. E não o inverso. Há quarenta e cinco anos te esqueci, porque soube que não poderia passar o resto da minha vida a me lembrar. É curto o saber de que tudo vai embora. Hora ou outra você iria. E eu não aceitaria ser aquele que foi mandado embora. Eu tinha um pouco de medo. Mas eu zelei mais por mim do que por você. Eu poderia não ter colocado o ponto e ter arcado com as reticências. Eu tive tanto medo de que você enlouquecesse, mas quem enloqueceu fui eu. "Uma vez eu amei", assim que vai começar, minha Helena. Uma vez eu amei muito antes de ser amado. E eu larguei meu amor antes, para não o ver indo embora depois. Eu disse para você sair e ver o mundo, minha Helena. Você não entendeu o teste: o mundo, para você, deveria ser eu. Foi o que eu quis...

Esse livro vai para o meu mundo,
com muito amor.
(Amor que o mundo não viu, mas que eu dei).

2 comentários:

Louise Boeger disse...

eu sei quem escreveu, mas não foi vc. tô assustada.
pára de escrever minha vida, pára! arrepiei

Bianca B. disse...

Um coisa que eu posso dizer e que resume tudo: meu orgulho por ti é imensurável. Não só pelos textos, mas por tudo que faz eles existirem.