segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

De Temps En Temps.

Pouco antes de me decidir esquecer de tudo, só me resta uma última memória para remoer no doce frio de Dezembro. Afundado debaixo dos cobertores, tomando o café gelado de três dias, arrancando as cascas das feridas espalhadas pelos braços: fios avermelhados, tal qual a cor dos lábios. De nada mais quero me lembrar. No fundo até quero - todo homem tem um pouco de masoquista e de louco. Mas é preciso que eu acenda um cigarro, e deixe que a fumaça me preencha um pouco: fobia do vazio, para que enfim eu consiga falar mais um pouco disso. Um trago, dois tragos, dois e meio: e que se fodam todos os estragos. Os dentes amarelados, a pele envelhecida, a voz rouca, o humor nublado. Finalmente me sinto preparado e respiro fundo e transpiro frio e falo: a hora em que a cabeça dela apontou pela porta: não sei foi minha cabeça ou se foi o tempo que parou. A gente conta os segundos, porque a vida nada mais é do que uma crise de ansiedade seguida de choros e espamos e sorrisos, tudo meio torto e inacabado. Às vezes acho que o coração existe só para nos fazer falta, porque eu sei que sinto falta de tudo. Eu sinto falta do que passou e do que ainda há de passar. Tenho pressa, é o que acho. Tenho pressa porque não sei o que me espera e isso me tira o sono, e o apetite. E no desespero de não escutar os sinos tocarem todo dia às seis horas da tarde, penso até em me atirar da janela. Não obteria sucesso. Talvez perdesse alguns dentes e algum tempo no psiquiatra. Não penso em me matar, que fique claro: tenho tudo à perder, mesmo que às vezes não encontre nada. Não obteria sucesso porque não haveria nada de lírico ou romântico nisso: eu estaria somente abandonado às traças e aos traços de algum pintor de rua que passasse e resolvesse usar meu sangue para desenhar minha silhueta e demarcar o-lugar-do-louco-que-tentou-suicídio. Talvez eu conseguisse alguns segundos de fama e aparecesse nos jornais para todos sentirem pena, ela sentiria pena. Ela sentiria pena e apareceria no leito do hospital para passar as mãos no meu cabelo e dizer que sempre soube que eu era um porra louca que só enlouquecia por não encontrar nada melhor para fazer. Mal sabia ela, mas eu tinha tanto para fazer: eu tinha que organizar meus livros por ordem alfabética, compor um thesaurus de angústias e sentimentos outros, arrumar companhia para passar a noite, para passar o calor, para passar qualquer coisa viral que nos fizesse definhar por completo sem escapar um da memória do outro. Falando assim, eu percebo mais uma coisa sobre mim: eu vivo de memórias, e em nenhum lugar do mundo se encontraria alguém tão assumidamente triste. Eu vivo de memórias e comecei dizendo que estava aqui para remoer minha última. Eu, que vivo de memórias, poderia viver o resto dessa vida com uma só? Penso que sim, se eu tiver a certeza de nunca esquecer aqueles olhos cheios de brilho e aquela voz açucarada. E não esquecer aquele primeiro de muitos beijos, e aquele primeiro amor de poucos outros. Eu poderia passar o resto da vida vivendo da memória dela. E eu posso até dizer que assim seria feliz. Mesmo que, na verdade, assim eu só seria um pouco menos triste. Ou talvez mais triste. Mas a tristeza seria calma e certa: porque eu a tive. E eu me sentiria seguro. Tive ao ponto de poder ainda me lembrar dela. E viver sabendo que tive, e que, aqui, ela esteve. E que daqui ela nunca iria embora, se ela vivesse para sempre nessa minha memória. Que nunca envelheceria, apenas, talvez, perdesse um pouco da nitidez e do contraste. Na minha memória ela seria para sempre minha. E é bem isso que eu quero, e espero, e desejo, eu desejo que ela seja sempre minha, do jeito que foi. Mesmo que tenha sido rápido, eu quero viver daquela memória e de nossos instantes. Eu a tenho guardada na estante, emoldurada: exibo como um prêmio. Exibo para mim mesmo: meu prêmio. Eu ganhei amor. Eu ganhei o amor que juro que foi meu e de mais ninguém. Na minha memória, ela aparece quando era minha, quando começou a se entregar. Se entregou no segundo em que cruzou os olhos e o destino comigo: acho, de verdade, que estávamos predestinados, meant-to-be, felizes-para-sempre naquele momento. Eu vou ser feliz para sempre naquela memória. E que se danem os valores morais e viva-o-instante-e-o-agora, eu revivo meus instantes agora: porque preciso resgatar aquela felicidade se quiser seguir. Não que eu vá seguir em frente, eu sigo, seguirei caminhando. E me levanto, e vou até a sala, e acendo o abajour, e um outro cigarro: não há vazio, não há. E troco o café por três-quase-quatro dedos de whisky, por me sentir meio insano sem qualquer motivo aparente: são negadas todas as loucuras escondidas entre as vísceras. Confuso, nenhuma outra palavra me define. E eu vasculho meu vocabulário pobre e ultrapassado, mas nada de diferente encontro. Eu quero um encontro. É isso. Um encontro que não seja aquele em que parei de funcionar como um homem forte e desvencilhado dessa loucura que é se jogar do precipício da dependência na vida de alguém. Porque hoje eu sei que cresci e não sou mais menino de jogar tudo e mais as mãos para o alto e dizer: leva tudo, pode levar! Sem ter a ciência de que tudo poderia ter ficado e eu poderia ter sido levado junto. Os bens materiais são descartáveis, como são as seringas e certas mulheres - em doses exageradas até alcancei alguns encontros: de duendes à ela em corpos morenos e descuidados. Nada arde mais do que o alcance do inalcançável - aquele momento em que se perde toda a lucidez e, de repente, a televisão vira um bolo de aniversário, e uma mulher de calça justa e que cobra caro parece ter aqueles olhos tão amados e aquele beijo tão querido. Deixa eu sentir essa falta. Deixa eu sentir essa falta porque é ela que resgata minhas memórias. E por elas que eu continuo sentado aqui, sem que a sala esteja vazia e as cortinas abertas, e um corpo estirado na calçada. Eu quero um encontro, e não é porque sem ela eu me perdi. Eu já estava perdido muito antes, e nenhum daqueles cílios longos poderia ter me salvado disso. Ela sempre soube da minha inconstância e do meu mal-quer-à-quem-quer-bem. Só não me perca porque você não me vê: foi uma das coisas que eu disse e tanto a machucou. Mas ela não via que o estrago era bem maior, que o buraco era bem mais fundo, e que não era possível tocar, nem diagnosticar. Eu quero um encontro, resgatando isso tudo, percebo que já não me bastam as memórias.
Quand le souvenir s'arrête
Et l'océan de l'oubli,
Brisant nos coeurs et nos têtes,
A jamais, nous réunit.

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