terça-feira, 21 de setembro de 2010

Um e Dois.

I.
Sem querer, eu te acho, por entre as estantes, num velho álbum de fotos. Atrás da poeira, em letras desgastadas e douradas: férias. E não sei se abro ou coloco na lixeira. Paro para pensar: abro. Nós dois na praia, nós dois no parque, nós dois no banco, nós dois no restaurante, nós dois no barzinho, nóis dois e amigos, enfim, nós dois. Em todas as fotos, os mesmos olhares e sorrisos, tão loucos e apaixonados. Nunca pude te dizer, mas sabe, agora, olhando, foram sim momentos felizes. Foi sim uma vida feliz, aquela que foi nossa. Não adotamos um cachorro abandonado, ou tivemos filhos e uma casa no subúrbio, coisas que, há alguns anos, comecei a fazer com outra pessoa. É, acho que pensamos que, dessa forma, não seríamos completos. E sabe, até hoje não me sinto inteiro, mas não culpo a ninguém. Saio cedo, almoço na rua, volto do trabalho de madrugada, beijo a testa das crianças e, em um abraço sonolento, me cubro e durmo. Mas sou feliz, não daquele jeito louco e apaixonado, mas feliz. Com mesa posta e jardim florido. Não sei como nosso álbum-mais-feliz-de-fotos foi parar na estante, os outros se perderam entre tantas mudanças. Sei que, pensando bem, ele é a única parte que me cabe nessa sala, nessa casa, nessa vida. Seria estranho se eu te contasse como o nó dessa gravata me deixa preso, como a sola do sapato é grudada ao chão. Não sei, penso alto como se estivesse me escutando, e não estivesse atarefada com algum fazer urbano. Acho que sempre aconteceu alguma cumplicidade entre nós, e é por isso que eu penso, e penso que você me escuta. Por favor, diga que está me escutando.

II.
Sem querer, eu te acho, por entre as caixas, num velho caderno de anotações. Atrás das coletâneas, em letras maiúsculas e borradas: o livro dos sonhos. E não sei se folheio ou rasgo. Paro para sentir: leio. Nós dois apaixonados, nós dois embriagados, nós dois aninhados, nós dois molhados, nós dois perdidos, enfim, nós dois. Em todas as linhas, os mesmos traços e abraços, tão loucos e apaixonados. Nunca quis te dizer, mas sabe, agora, lendo, foram sim estórias felizes. Foi sim uma vida feliz, aquela que foi nossa. Não viajamos por toda a Europa, ou nos beijamos na Torrei Eiffel e na Ponte dos Suspiros, coisas que, há alguns anos, fiz com outra pessoa. É, acho que pensamos que, dessa forma, não seríamos inteiros. E sabe, até hoje não me sinto completa, mas a culpa é toda minha. Acordo cedo, nem almoço, chego no aeroporto de madrugada, desfaço as malas e, em um abraço saudoso, me despido e durmo. Mas sou feliz, não daquele jeito louco e apaixonado, mas feliz. Com muitas milhas e lugares a visitar. Não sei como meu-livro-mais-realizado-dos-sonhos foi parar nas caixas, os outros se perderam entre tanta correria. Sei que, pensando bem, ele é a única coisa que me lembra, do passado, do presente, da vida. Seria estranho se eu te contasse como viajar de avião me aterroriza, como eu rezo para chegar logo ao chão. Não sei, penso alto como se estivesse me escutando, e não estivesse distraído com alguma tarefa suburbana. Acho que sempre aconteceu alguma sintonia entre nós, e é por isso que eu penso, e penso que você me escuta. Por favor, diga que está me escutando.


3 comentários:

Anônimo disse...

III. (pessoa)

De alguma forma, eles se encontravam por entre as estantes, em meio às caixas, ou de lado à vida. Sentiam medo das próprias memórias, dos sonhos que haviam preferido abdicar ao cômodo, comodismo. Nunca puderam – ou souberam – dizer o quanto se amavam. Na verdade, talvez não soubessem nem mesmo que era amor aquilo. Buscavam completude, sem perceber que o amor se faz em ausência, em incompreensão. A correria seria mais comum, mais simples, mais fácil. Mais urbana. Mais concreta. Do que aquele sentir.

Não se escutavam - mas se sabiam.
Não se tateavam - e se sentiam.

[ Gosto muito de teu romantismo posto em letras. Muito. E o impulso – com teus textos -, como já disse, é persistente. ]

Julianna Motter disse...

Nossa, casa comigo!
Tá, mas sério, obrigada pelo comentário - pela continuação.

Anônimo disse...

Nos textos, eu até já casei. Mas dizem as más línguas que você já tem muitos casamentos marcados. Prefiro não deixar nada premeditado. ;)

Tá, mas sério, não se agradece por comentários - continuação. Aliás, eu considero eles mais seus do que meus. Você pode reclamá-los só, que aí eu páro de escrever.