sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Chico.

Pra nunca esquecer, pra nunca esquecer, e beijou-me na ponta do queixo, e embalou-me ao som do disco. Suas mãos fortes e ásperas subiam e desciam por minhas costas, tateando o relevo. Seus pés grandes e desengonçados arriscavam giros. A gente era obrigado a ser feliz, não, a gente era feliz porque queria. E seu cavanhaque tentava esconder a voz grave que escapava pelos lábios rosados. E dos dois primeiros botões abertos da camisa, saltavam os pêlos de seu peito desenhado. E eu pequenina grudada em seus um metro e muita altura. E seus olhos de menino pedindo por carinho. E meus olhos se entregando e querendo saciar todos os seus desejos. E nossas mãos por debaixo das roupas. E a lembrança da infância, das árvores em que subíamos, dos anos que passaram, do tanto que mudamos, e esperamos, e aguentamos e ali estávamos. Pela primeira vez crescidos, e prontos, e com sede e saudade do toque nunca sentido. Respondendo aos primeiros sinais, que vieram quando ainda novos, aos Domingos, que ficávamos um a vigiar o outro, enquanto o resto da cidade ia para a missa. Sinais de um tempo mais depois, de quando você foi para cidade esse-moleque-vai-virar-médico-acredita? E a vizinhança inteira celebrava sua partida, enquanto eu começava pelos segundos a contar o tempo até que voltasse, se é que voltaria. E os segundos prolongaram-se até formarem anos. E de ano em ano, a-menina-decidiu-que-quer-ir-pra-cidade-grande, e também parti. E voltei a contar os segundos para que nos reecontrássemos na rua, passando pela Avenida Paulista, pegando o metrô na Vila Madalena, ou com o toque calmo de um telefone. Acontece que, somados sete anos, desde sua partida e depois desde a minha, resolvi voltar para ver pai, mãe, e os lugares que conhecemos juntos. E cheguei, moça-da-cidade-essa-aí, trazendo na mala alguns agrados que consegui trabalhando de garçonete, frentista, e de namorada de figurões. Aconteceu que, somados os tais sete anos, desde sua partida e depois desde a minha, o-moleque-que-virou-médico também resolveu voltar. E lá estava, de pé, na frente da igreja, branco como nunca vi, menos engomado do que se esperaria de um moleque-que-virou-médico. E olhou para trás quando escutou o barulho do meu salto nas pedras, e sorriu grande, feito queria sorrir de uma ponta à outra do mundo. E levantou-me pela cintura, esquecido de que já não era mais menino. Eu abracei seu pescoço, um beijo na testa e éramos os dois de novo. À noite teríamos festa, não-é-sempre-que-vocês-aparecem. E cada um em sua casa, e cada um em seu quarto, e cada um em sua melhor roupa que trouxe da cidade. E todos se encontraram no boteco, e todos se perderam depois de algumas garrafas e horas. E nós dois dançando, dançando, dançando, feito o vento frio tivesse suspirado que o mundo só continuaria a girar enquantos nós continuássemos a dançar. Hora por hora, todo mundo se foi, ficamos nós dois, as chaves da porta e a voz cantando. Foi quando pegou-me pelo braço, pra nunca esquecer, pra nunca esquecer, e beijou-me na ponta do queixo, e todos os movimentos crescidos e nostálgicos. E ali passamos a noite, dançando a dança dos gemidos saudosos e cuidadosos. Uma semana dali, e voltaríamos para a cidade. Quis contar os segundos, mas não pude acompanhá-los. Dias e noites de algodão-doce. Partimos em ônibus diferente, o-moleque-que-virou-médico e a-menina-da-cidade. Não fizemos promessas de reencontro breve, ou dissemos que daríamos continuidade. Ficou lá, breve, mas nem por isso, fraco, o sentimento que se dispôs ao resgaste do tempo perdido, ao aproveito do tempo encontrado. De repente, a cidade parecia menor, e seu corpo branco teimava em encontrar com minha pele manchada. E quem te viu, quem te vê, hoje a gente até se fala, mas a festa não continua, nos perdemos na saudade, no atravessar de ruas...

2 comentários:

danielpolivalente disse...

tem planos pra um livro esse ano?

Anônimo disse...

(Buarque)

“Nunca é tarde; Nunca é demais”- você diria incessantemente, enquanto eu te apertava contra o meu peito com uma fortidão febril de quem receia desatentar o momento. Trocando em Miúdos, fomos uma única vez, mas fomos felizes de um modo que nunca fui depois, eternamente. Eu, médico-da-cidade, você, moça-urbana, a poucos passos de nos deixar, em Estreitos Nós, e voltar ao Cotidiano. Acordo ao teu lado, as brechas nas persianas revelam A Banda que está a tocar na cidade, e parece musicar-nos. Preparo um café aguado – lembrança de teu gosto infantil –, meu Coração Apertado, Desandando Bater Apressado, mais tarde cada um para seu lado, e sinto uma saudade antecipada de algo que nunca foi. Anos atrás, eu era o rei, você, a princesa, e trepávamos entre as árvores a descobrir os segredos do mundo.

Mas olho a frente, e, Apesar de você, Amanhã a de ser Um Novo Dia. Em poucos dias, poucas horas – combinados a uma memória infantil -, te tornaste um Pedaço de Mim. Mas deixo-te ir, deixo-te passar, deixo o tempo-passar-pela-janela e, junto a ele, mais outros Anos Dourados.


Aliás, nenhum Faz-de-Conta se Termina Assim.