domingo, 24 de abril de 2011

Sonhos.

Lá vai ele, outra vez, tentar secar as feridas que nunca viu sangrar.
Lá vai ele, outra vez, escrever as dores que nunca sentiu.


Caminhando, vagarosamente, pelas ruínas da cidade que eu construí com a ganância da minha mente. Caminhando, como um santo, pelas sombras, com o sangue escorrendo pelas mãos. Os glóbulos que não me pertencem escorrendo, como as gotas da chuva - que chove agora - nas janelas. E os prédios, e as calçadas, e os paralepípedos, e as placas, se destruindo atrás de mim. Meus passos alimentando o caos. Você disse, melhor que nunca tivesse existido. Mas eu não vim para falar de você. Nem dos seus dizeres. Eu tento me esquecer. Dizem que é melhor levar com calma que, devagarzinho, vai saindo do coração. Às vezes meu peito dói um pouco, e eu juro, juro mesmo, que é você fazendo os primeiros cortes, até que abra um buraco grande o suficiente para sair. Espero que você não passe em frente aos meus olhos. Mas eu não vim para falar de você. Não é como se merecesse minhas palavras - embora escassas. Nem meu choro - ah! se eu ainda chorasse. Se eu ainda desperdiçasse tempo chorando. Com muitas lágrimas eu poderia fazer dos meus olhos um par de oceanos. Das minhas íris, dois barcos. Duas grandes navegações. Onde sua imagem já navegou, boiou, flutou, habitou e, depois se foi. Uma embarcação vistosa, momentos depois, naufragada - quando cedi as lágrimas. Mas eu não vim para falar de você. Embora seja difícil. Uma das tarefas mais árduas da vida é tirar da ponta da língua aquilo que mora no coração. Caminhando, nos momentos em que eu deveria estar com você. Eu achei que seria assim. Dois oceanos que se cruzam. Oceanos, não rios ou lagos, por percorrerem infinitos alcançáveis, portanto não tão infinitos assim. Se há infinito, ele parece finito para mim. Ainda que a linha do horizonte pareça longe, é possível tocá-la com os dedos. Debruçando-se sobre o asfalto - ainda quente dos dias e mais dias de sol -, acendendo um cigarro, vendo desenhos nas nuvens, e apontando os dedos. Todos eles, tem-se a linha mais distante e mais desejável acima de seus pés. A distância seria, para todos e para tudo, a melhor saída. Se sair fosse fácil, se eu tivesse realmente entrado. Não duvido de ter estado presente em seu coração. Ninguém diria o que me foi dito só por dizer. Que era novo e, sendo assim, delicado. Que era delicado e, sendo assim, precisávamos ter cuidado. E, por isso, não me toque. Nem me olhe. Nem me beije. Vamos manter em segredo. Mas você sabe que eu guardo tudo que é sincero para você. Eu acreditaria em tudo, de novo. E você ria e sorria e tocava e não era eu. Você pedia para que não mas, ainda assim, eu olhava. Ciúmes eu teria se você tivesse se permitido. Não sei o que diabos havia de tão errado. Para você me evitar, logo depois me procurar, e então me empurrar, e despir seus ombros, e aproximar seu rosto, e roubar meus suspiros. Eles poderiam ser os últimos. E você não os merecia. Mas nada te importava. Nada te comovia. Nada te tocava - se é que havia algo sólido. Nada havia em você, senão o desespero. Um desespero que te rejuvenescia dez ou doze anos. Sorria que nem menina quando deitava a cabeça em meu peito. Mas eu não vim para falar de você. Nós nem nos falamos mais. Desde o dia em que você me pediu vá embora, e eu não quis ceder. Eu não quis, eu não quis, eu não podia! Você disse, melhor que nunca tivesse existido. Foi quando tudo em volta se desmanchou. E eu não reconhecia a boca que sibilava aquelas palavras. Não é isso que eu quero para mim. E você entrou no carro. Dois segundos até dar a partida. Dando ré, quase atropelou um pombo. Chequei, tendo desconhecido até então o meu reflexo, todos os espelhos. Você não olhou para trás. Você nunca olhou para trás. É possível ainda escutar o atrito da água com as rodas, e o volante girando com as curvas. E você nunca olhando para trás. Com os vidros abertos, seus cabelos voando com o vento. Os fios todos mais escuros. Ali, a vida perdeu um pouco do contraste. Eu acendi aquele cigarro que nos prometemos. E cantei aquela música que, tempos depois, esquecemos. Tentei, ainda, te alcançar. Caminhando, vagarosamente, pelas ruínas da cidade que eu construí com a ganância da minha mente. Imaginando se aquilo tudo havia realmente acontecido ou se haviam colocado algo na minha bebida. Eu sequer bebia, na esperança do celular tocar, e eu ter que sair correndo para te encontrar em algum outro continente. Foram cinco anos, e eu contei os centésimos de segundo. Nenhuma notícia sua. Nem debaixo da minha janela - como você fazia, quando, embriagada, precisando de alguém que soubesse te amar da forma que não sabia aceitar -, nem nos jornais. Nenhuma notícia sua, e eu voltei a caminhar. Como se o mundo ainda fosse o mesmo - apesar de sua ausência nele, ainda presente em mim. Leva-se um tempo para aceitar a verdade. O que me assustava, tendo lidado tão pacientemente com as suas mentiras.

3 comentários:

Anônimo disse...

Me arrancou lágrimas. É só o que eu tenho a dizer.

Anônimo disse...

Brilhante!

Julianna Motter disse...

Muito obrigada, de coração.