terça-feira, 12 de abril de 2011

Escrita.

Seus olhos. Seus olhos quando encontravam os meus - parece o início de um poema, mas é só uma declaração de amor. Nem todas as declarações de amor são poéticas, ou amáveis - como o próprio amor -, elas podem ser amargas, letais, infecciosas. Ou apenas declarações de amor, sem qualquer qualidade ou utilidade prevista. Eu nunca te deixei partir, mesmo quando me implorava, dizendo que doía demais viver por mim. Viver o que eu não pude, digo. Sempre tive problemas em encarar a realidade. Então melhor era me esconder nas fantasias ou sob o seu sorriso. Melhor era levar a vida como um ensaio para uma outra vida que fosse de verdade. Um dia você ainda vai morrer, você me dizia, disfarçando sua preocupação com a ordem dos talheres na mesa. Um dia você vai morrer, e até lá você sofrerá muito. Você meio que previa, e eu ria sarcástico. Não que eu não acreditasse na morte, é claro que eu acreditava, apesar da minha insuficiência psicológica e do meu ceticismo. Eu acreditava na morte como uma ponte. Eu sempre te falava das pontes, as pontes que nos levariam as coisas reais da vida. As pontes concretas e a magia de estarem tão seguramente presas ao chão, ao chão que ninguém vê, cobertos por metros e mais metros de água e nosso instinto de atirar-se delas. Você achava engraçado, e eu não entendia como. Eu levava aquilo com tanta seriedade. Talvez a única coisa na vida na qual eu realmente me segurava. Eu vivia pregado naquela idéia de atravessar por quilômetros, sentindo o vento balançar os cabelos, e de repente, chegar do outro lado e ver tudo mudar. As vistas mudam de acordo com o ponto de referência. Isto eu não precisaria dizer para ninguém. É algo sempre muito claro. E, isto seria, para mim, a verdadeira morte. Cruzar uma ponte, e ver tudo que eu antes via - e vivia - de uma outra forma. Com mais suavidade ou leveza. Ainda que os arcos balançassem durante o caminho - isto se houvessem arcos, eu não sei prever o quão simplória ou não é a arquitetura em volta deste ritual de verdadeira partida. Eu não tinha medo da morte. Nem medo de pontes. De cruzá-las ou me sentir tentado a desafiá-las em um salto. Ou desvendá-las. Voltando a você - e tudo aquilo que orbita em sua volta -, eu devo dizer que nunca conheci ninguém igual. Talvez eu tenha conhecido. Mas meu amor foi capaz de te mudar para mim. Eu te olhava com olhos diferentes daqueles que olhavam para os lados. E quando você se refletia neles, o mundo todo mudava. Mas não era o suficiente para que eu me desgarrasse dos meus instintos primários. O homem foi feito para a reprodução, todos sabem. O poeta foi feito para a decapitação. Alheia, nunca a dele. Somadas estas duas partes, eu me tornei o que sou. O que fui para você. Convencido de que todos os meus pecados deveriam ser perdoados - antes, convencido de que não eram sequer pecados -, afinal estava tudo no sangue. E, ao menos que você fosse capaz de me prover uma transfusão de sangue - e alma -, nada poderia mudar. Eu tentei, acho que você sabe. Tentei lutar contra meu desejo de carne e minha sede de morte - desta vez, como algo espiritual, com ressureições e renascimentos. Tentei ir contra minha natural busca por sentimentos. Sim, era impossível apenas vê-los de longe. Eu precisava sentí-los invadindo meu corpo. Você se cansou, e eu entendo. Cansou-se de me pedir para que parasse, para que não me destruisse, não definhasse. Cansou-se de me amar tanto enquanto eu amava a tantas. De ter que me buscar de madrugada em coma, descontrolado, violento, insandecido, insaciável. De me dar amor depois de eu ter roubado suspiros de outras. Eu sabia exatamente quais palavras usar para te convencer de que com você era diferente. Com você realmente era diferente. E eu sabia todas as palavras, para todos os momentos. E você sempre era minha, e se aguentava com pílulas para dormir e meias para manter seus pés aquecidos. Você me resgatava dos fundos dos poços, e depois eu te agradecia com um amor desgraçado. Eu acabava contigo e, no fundo, não era só você que sabia. Você me levantava, você me erguia, e eu te beijava, mas nada do que eu te dava cabia. E você aceitava. E vez ou outra se indignava. E então tudo sempre acabava, com a cara lavada de quem não devia nada, felicidade ou repulsa ou mais vinte anos. A minha cara ingrata. Com a feição monstruosa de quem se julga melhor que qualquer um. Eu selecionava minuciosamente as palavras e, novamente, você voltava. E eu te abandonava, ia atrás de carícias. E escrevia um haikai, depois um poema, media bem as sílabas, decidia optar por um conto, quando me doía demais, eu escrevia um livro. E eu pedia para você ler. E você sorria, mesmo inconsolável. Você podia contornar claramente as pernas de cada uma delas através das minhas páginas. E sentir o meu beijo alcançando-as. E meu desejo crescendo. E o gozo final, quando você chorava. E dizia que era tudo muito lindo, mas que não aguentava. Eu te amo para além da vida, mas isso não é amor, é a própria vida. Você lia e relia em voz alta. Seus olhos lambuzados de rímel e lágrimas. Você escorria toda. E era tudo tão lindo, mas nada ali era seu. E você não se continha e permanecia chorando, isolada por horas. Relendo tudo para tentar entender porque não havia sido com você, porque não podia ter sido com você. Era tudo mesmo tão lindo. As vírgulas, os travessões, os segredos. Um deles, eu nunca te contei. Mas permanece, além de qualquer linha ou exclamação. Eu escrevo através do que você escreveu em mim.

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