quarta-feira, 6 de abril de 2011

Tanto Quanto Maior.

É assim que eu me curo das grandes coisas na minha vida. Através da reclusa. Do confinamento. Da solitária. Quando ela foi embora, eu precisei me curar. Eu me tranquei nos quartos. Em todos eles. Em qualquer lugar. Eu atirei minha cabeça - repetidas vezes - contra a parede. Eu descasquei os pedaços sólidos de tinta em volta das rachaduras. Eu cortei a ponta dos meus dedos. Eu sangrei. Eu sangrei para caralho. E eu morri. De forma a renascer. Depois de um ano ou seis. Quando o formato do rosto dela perdeu a nitidez. E eu esqueci da cor de seus olhos. Da saliência - ou não - de suas olheiras. Quando eu a deixei ir. E não mais amava suas coxas, nem seu sorriso, nem seu pâncreas, nem seu fígado. Quando eu não fiz mais questão de sabê-la de cor ou de tê-la no coração, eu acordei para ver o sol. Era um dia quente. Provavelmente por ser verão, ou por eu ter quebrado o ar-condicionado em um chute. Ela existiu por pouco tempo na minha vida. Digo, fisicamente. Eu não recebi muitos abraços vindos dela. Nem muitos beijos. E ela não me chupou, nem me amou. Nem me pediu em casamento, nem quis ter filhos, nem veio contra meu corpo em movimentos desejosos ou horizontais. Nem ziguezagueou pela minha cama. Ela gostava de me puxar pela barba e, achando que eu gostava de volta, ria e me beijava a ponta do nariz. Sempre dizia que eu tinha cara de moleque. Se eu tivesse sido mais homem - com isso, quero dizer mais violento -, talvez ela teria achado instintivo pertencer a mim. E ficar comigo, por mais dez ou três mil noites, pela eternidado. Ficar comigo até a hora do jogo, e limpar a poça de cerveja, e reclamar das manchas nos móveis, e me trazer um guarda-copos, e morder minha orelha e se colocar para dormir em cima de mim. E ficar comigo. Por um tempo, era tudo que eu quis. Que ela tivesse ficado. Porque algo ali era diferente, e especial, e imediato, e inconsequente. Tipo de coisa na vida que é fácil de se inventar motivos para evitar. Ela evitou, entre um piscar de olhos e dois segundos tentando tirar um cílio preso na pálpebra, ela pegou a bolsa e saiu. Sequer se deu o trabalho de fechar a porta. Dois dias depois estava se enroscando e brincando de amor com um outro. Não procurei saber, mas são coisas que, sem querer, a gente sabe. A garganta aperta, o ar arranha, o coração acelera e de repente a gente pensa que alguma coisa ruim está prestes a acontecer, e conta para um amigo, que te serve uma dose de whisky e te diz que você anda muito estressado por causa do trabalho. Mal sabendo ele que você pediu as contas na semana passada porque queria arrumar uma mochila e se mudar para Toscana por um mês ou dez anos, porque tinha encontrado a pessoa certa e você merecia aqueles momentos felizes nos vinhedos no sofá no chão da cozinha sem as partes de baixo ou totalmente pelados coberto de chocolate ou sujos de lama sem se importar com nada. Eu soube. Eu senti alguém se aproximando dela, e ela sem se esquivar. E meu celular tocando, e um amigável aviso ei, amigo, eu vi a Fulana aqui na festa com Fulano num movimento estranho vocês ainda estão juntos? Nessas horas a gente só responde, e em algum momento estivemos? E finge que está tudo bem. Porque está tudo bem não está? Porque eu nunca olhei para ela e a amei sem precisar explicar como eram amáveis seus lábios como eram amáveis suas maçãs-do-rosto suas negligências suas overdoses seus rins seu nariz seus lábios sua timidez sua língua suas artérias seu fígado suas sardas suas pintas sobre os ombros seus joelhos arroxeados sua vontade de correr mundo. Porque eu nunca a olhei de olhos fechados. Nem a tive em sonhos. Nem a guardo como um tumor que a cada vez mais cresce e cresce e cresce e me definha e me tira o apetite a razão a vontade de acordar sorrindo a vontade de acordar apenas. Mas eu disse que a deixei ir e mantenho a palavra. Nunca mais liguei depois das duas da madrugada perguntando se viu a lua e pedindo para alguém rir ao fundo só para ela achar que eu não estava ligando por estar desesperado nem em crise de abstinência. Para disfarçar o amor primitivo e irracional que eu cultivava. Para disfaçar porque esconder era impossível, bastava escutar a primeira sílaba de seu nome que meu coração já acelerava e escapava do corpo e ia até onde você estava só para te observar e pensar meu Deus como eu escolhi amar o amor certo. Mas depois se arrependia, quando outro par de olhos de invadia e não era eu deitado ao seu lado assistindo televisão e comendo pipoca e sendo amado. Era difícil me amar, mas seus motivos eram outros. Não era você, era eu. Com você tudo bem, coração a mil, jovial, com um ou dois hematomas, nada muito sério, né, Doutor, eu vou conseguir amar assim de novo, né, só vai doer um pouco, mas vai ficar tudo bem, né. Ficou sim, você só não precisava dizer que o problema era contigo e me deixar angustiado, perdendo noites tentando descobrir quem diabos havia te deixado assim e arquitetando planos para acabar com o tal cara, enfiar a cara dele na privada e dar um belo chute no saco que um dia, pelo visto, você amou sem pudor algum. O problema era comigo, com o amor que você não quis me dar porque, aparentemente, eu não era digno de receber. A cor da minha pele é a mesma de quase todos os homens, a minha estatura também, meus olhos tem a mesma cor de uma poça de lama e eu não tenho nada de especial. Mas mesmo assim você preferiu se entregar a outro. Eu não representava nenhum mal. Não tinha nem charme para instigar ciúmes, nenhum músculo para aumentar o calor. Eu era o mais simples dos simples, vai ver isto te deu medo. Porque eu andava na rua e as pessoas olhavam surpresos com o meu rosto que era o mesmo que poderiam ver do outro lado do mundo. Só uma coisa me salvava de não ser mais um na multidão. E não eram minhas palavras nem meus poemas nem meus surtos psicóticos nem minha depressão nem meu umbigo para fora nem meu vinho favorito: era o amor que eu deixava explodir na minha pele por você. E era inegável, irrevogável, e todos sabiam. E quem não sabia, imaginava. Era tanto amor que eu podia distruibir à noite para os pobres, servir em um panelão e depois dar abrigo. E nunca faltaria mais, pois se multiplicava. Tigelas quentes de um amor que você negou receber. Eu devo ter te assustado, mas eu não era assim tão claro, a não ser através da minha pupila que dilatava toda vez que você surgia na frente dela. Eu te esqueci. E isso chega a aumentar a dor. Porque eu falo da boca para fora. Já tão cansado por ter permanecido anos e anos calado. É assim que eu me curo das grandes coisas na minha vida. Através da reclusa. Do confinamento. Da solitária. Quando ela foi embora, eu precisei me curar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigada.





Por sempre escrever o que eu sinto.