quarta-feira, 30 de março de 2011

Meu Sonho.

Não é possível que nunca tenhamos nos esbarrado, ela disse. Já tendo notado a mesmice dos traços e pêlos em meu rosto. Nunca - não nesta vida - eu havia visto o rosto dela. Se eu houvesse, falei com certeza, eu me lembraria. Porque os olhos encaixados naquela face fina e delicada, eram afiados. De forma a marcar qualquer um - que tenha, ao menos, um coração. Falo ao menos porque nunca se sabe em quantos um ser-humano pode ser desmembrado. Nem em quanto tempo cada membro pode tomar vida própria. Ela não disse muita coisa, foi como se evitasse olhar para mim. Não sei se por medo, ou qualquer outra sensação que exigisse cautela. Também não sei se aproveitava para olhar enquanto eu me distraía com as luzes. Quantas luzes em um mesmo lugar, eu pensei. E quis partilhar tal observação estúpida. Mas quando me virei, só restava uma fina linha de seu perfume no ar. Outra vez, caminhando sonolento pela rua, uma mão alcançou meu ombro. Acho que já nos esbarramos, ela disse. Relembrando a palidez dos meus lábios e a acidez de meus sorrisos. Sim - além desta vida, aliás. Combinamos um café. No momento em que nós dois sugerimos o mesmo horário, eu soube que ali não haveriam sustos. Nem formas desfiguradas nas sombras. Ela me deu carona. Seu carro cheirava o mesmo cheiro que havia ficado a flutuar em nosso primeiro esbarrão - o primeiro do qual tivemos certeza -, mas desta vez mais forte e presente. No espelho, havia pendurado um pequeno círculo de papelão - suponho -, com o desenho de um pássaro e be free. Eu pude reconhecê-la dos meus mais desconexos sonhos. A vida foi feita de momentos. Mas, até então, nenhum havia sido tão claro como aquele. Que foi seguido por outros. Não houve café. Só cigarros e nove garrafas de cerveja. Ela tinha pressa, e por isto bebia numa rapidez olímpica. Não queria ir embora, acredito, ao rever tudo que passou. Mas queria saber o que viria depois. Ela tinha uma pressa infantil e cautelosa quando se tratava do futuro. Futuro, era uma palavra que eu nunca pude dizer na frente dela. Só a intenção de dizê-la já dava, nela, uma vontade de sair correndo e rolando pela grama. Ela sequer me dava a oportunidade de planejar outros encontros. Deixa acontecer, deixa vir, deixa que se for para ser, vem. Ela dizia. Meio risonha, sem conseguir esconder o que estava por trás. Eu nunca soube dizer exatamente o quê. Mas havia algo ali. Que se acentuava cada vez que, nervosa, ela coçava a nuca, e erguia os braços, e se espreguiçava, e começava a falar sobre o mochilão que havia feito pela América do Sul. Não faltou um lugar sequer, dizia em um tom orgulhoso. Eu só podia me orgulhar junto e fingir que não me importaria em nem saber por onde ela andaria nos dias seguintes. Porque não me era autorizado ligar, nem enviar cartas, nem procurá-la no trabalho - muito menos no coração. Nunca me senti assim, ela dizia, tão livre, tão leve, tão sua, e ao mesmo tempo, de ninguém. Na metade da frase, eu já sentia meus pêlos arrepiarem e meus joelhos tremerem. Acho que alimentava - mesmo ela me pedindo para que não o fizesse -, uma esperança de que só sua bastasse. Só minha. Era o que eu esperava. Coisa que ela não poderia saber. De outra forma nunca mais me ligaria, depois das dez da noite, dizendo que o centro estava muito cheio e eu devia cair para lá, porque nós dois poderíamos beber uma duas até quinze cervejas, e rir da cara de bêbado dos outros. E, quem sabe, depois poderíamos dormir juntos, com os ombros encostados e dividindo o mesmo travesseiro. Ela me ligava quando se lembrava que, do outro lado da cidade, sentado na poltrona, lendo o jornal e fumando o último cigarro do maço, estava alguém que daria tudo para tê-la. Alguém que era eu. Às vezes eu acreditava que ela queria ser de alguém. Da forma doce e carinhosa. Mas logo eu era desarmado. Por muitas vezes tive que vê-la acariciar as coxas de outros sob a mesa, e me jogar vinte reais e dizer que se desse, me ligava. E entrar no táxi, quebrando o salto, e largando os sapatos comigo. Toda vez que ela quisesse fugir, ela pensava em mim. Ela se escondia no meu medo de não tê-la - mesmo não tendo, eu temia. Tê-la sem saber, quem sabe foi assim. Pois era para mim que ela ligava toda vez que a gasolina do carro acabava e ela ficava sozinha no meio da rua. Toda vez que ela queria tomar um porre ou enfiar nos canos e ninguém se dispunha a estar lá para mantê-la sã. Missão que nunca considerei possível. Nem domá-la, nem cuidá-la. Somente estar lá para que ela não acabasse fugindo de si mesma. Para que ela não acabasse no topo de um prédio sozinha. Dizendo para o vento, e não para mim, que Freud não sabia de porra nenhuma, que se id ego superego existissem, ela estava fodida. Que nada daquilo funcionava. Que ela queria acabar com o sistema e chamar a atenção do mundo. Você não vê o que está acontecendo? Ela gritava deixando a saliva escorrer pelo canto da boca. Está tudo errado, e se debruçava no meu colo, e chorava. Eu não sabia de onde vinha aquela dor. Se era passageira ou se havia estado sempre com ela. Admito que, em algumas horas, ela me assustava. Mais que trovões e mais que a morte. Ela me assustava por ser tão perfeita e, ao mesmo tempo, tão arruinada. Era isso que ela era. Um casarão tombado, cheio de segredos, indubtavelmente instigante. Belo, do lado de fora. Com um portal que poucos ousariam entrar. E dentro, cheio de teias e rachaduras - mais aparentes e descuidadas. Abandonada, tal como o casarão. Ao contrário dele, não tinha cheiro de mofo. Mas o hipnótico odor que circunda as travessas de doces. Eu degustei de seu açúcar, mas mais de seu veneno. Com o decorrer do tempo, mais nítida foi ficando a imagem dela na minha cabeça. De óculos escuros, segurando o volante com uma mão, falhando ao tentar sintonizar o rádio com a outra. Reclamando que porra nenhuma naqueles dias - e nos de hoje - era boa de escutar. O be free balançando com as curvas. Eu a reconhecendo de algum dos meus sonhos. Até então não sabia de qual. Hoje, eu já entendi. Sabe um daqueles sonhos em que você sente estar caindo e, de repente, acorda? Ela era assim.

2 comentários:

Anônimo disse...

E agora? como faz pra parar de chorar?

Julianna Motter disse...

Oun! Boa pergunta...