domingo, 2 de junho de 2013

As partes que te compõem

"Porque aquilo cuja existência se nega pode tornar-se perverso".


Era uma flor. Seria planta? Um pouco dos dois? Uma pequena orquídea. Num vaso preto de plástico. Daquelas vendidas em mercado. Comprada na semana que antecedia o dia dos namorados. Durou até meados de junho seguinte. Na beirada da janela. Assistindo, silenciosamente, o movimento da rua. Todo dia, fizesse sol ou chuva, ela estava sentada ali. Quando o sol batia muito forte, se fazia necessário fechar as cortinas, e ela ficava apenas a escutar os ruídos da cidade. Satisfeita, ainda e de qualquer forma. Às dezessete horas e quinze minutos, me sentava ao lado dela. E através das linhas de silêncio compartilhado, dividíamos nossas impressões sobre o dia até então.
"Não precisa regar diariamente, eu acho", disse a moça do caixa. Olhei para ela, depois para a planta, olhei umas três outras vezes, na mesma ordem. O "eu acho" estreitou nossa relação - minha e da orquídea -, dando um peso muito prematuro. A consciência de ter uma vida em minhas mãos veio subitamente. Precisei recorrer a internet. E li, com desconfiança, umas palavras que reunidas diziam algo mais ou menos assim: apalpe o substrato e, se úmido, não é necessário regar - a planta pode morrer por falta, mas também por excesso, de água.
É assim com tudo, pensei - num desses pensamentos bobos, mas que no momento seguinte em que realizados se fazem necessários. Tudo morre - ou acaba - por excesso ou falta. As dosagens e objetos - por assim dizer - é que variam a cada coisa no mundo - material ou não.
Estou num processo ainda - e imagino, este deve ser o real "luto" -, onde constato, progressivamente, a efemeridade e a finitude das coisas. Assim sigo em frente - caminho para a constatação definitiva, por experiência mais que própria.
Me apeguei a presença dela. Da orquídea. Pois uma presença quando somada a outra resulta na fusão que chamamos, costumeiramente, de "companhia". Ela me acompanhou durante meses ao pôr e nascer do sol. Embora calculável, o tempo que dividimos juntas não cabe a exiguidade do tempo. 
Vez ou outra olho para a janela à procura dela: que não está mais lá.
E através desse desejo de sua presença, me transporto as lembranças de tantas outras coisas que perdi. À partir delas que, realmente, compreendi o valor da perda. E que sou capaz de notar a importância de uma simples planta.
Não vejo a necessidade de nomeá-las para estabelecer uma conexão entre nós - eu e você. Mas posso, por outro lado, sintetizar e tentar transmitir a intensidade - que necessito para que você compreenda -, dizendo que perdi "tudo".
Sabe quando você perdeu tudo? - e nem Deus sabe como "tudo" pode ser tão relativo...
Se a recíproca for negativa, ao menos, você já perdeu "alguma coisa"? Então eu te explico avisando que nenhuma multiplicação seria eficaz, nem para ilustrar. Já estou exigindo demais de você.
A ausência é um derivado da ruptura de uma companhia. Mas o caminho também pode se fazer meio que ao contrário. Companhia, para mim, também pode ser resultado de uma presença com uma ausência. Desta forma, se tem uma companhia com a ruptura de uma anterior, mais uma presença.
O que importa é: é imprescindível, ao menos, uma presença para que haja companhia. No caso, vale até ela e a ausência de si própria - o "estar sozinho acompanhado" em suas diversas instâncias.
Quando distraído, sou tomado pela saudade. Aquela irremediável, imediata e incontornável saudade.
A saudade é um dia após o outro. Mas isso não quer dizer que ela acabe. Quer dizer, ela só tem fim quando ele chega para quem a sente.
Eu olho para o céu em busca de respostas - quando as necessito mais que tudo e, ainda assim, elas me escapam. E foi assim que me lembrei de algo que, um dia, escrevi na esperança de iluminar o dia de alguém - pois nós somos os únicos responsáveis por pintar perdas e saudades em tons escuros.
Eu disse bem assim:
É muito difícil, né - "difícil" acho que por não existir outra palavra que defina. Não a morte em si - pois é só consequência da vida. Mas a morte e ao que ela nos leva - lembrar que esta aqui, que esta mesma, é a vida. E que a vida nada mais é do que um fim nela mesma. Ou uma série de fins. De coisas que nascem e morrem - em nós, por nós, e a nossa volta. Sorte que esse cenário é todo bem bonito - embora em alguns momentos, e em alguns lugares, sombrio. E a gente tem que aproveitar cada minuto - mesmo sem entender os que já passaram.

Mas nunca mais, nessa vida, comprarei outra orquídea.

2 comentários:

Anônimo disse...

A cada leitura, vocÊ nos proporciona algo ou um sentimento bem real de alguns contos...Parabéns pela escrita e sucesso na vida senhorita linda!!

Giselle Alencar disse...

Parabéns pelo post!! Sempre dou uma espiadinha aqui e nem sempre comento, mas adoro tudo que você escreve!
Me identifiquei muito porque já tive plantas e nunca soube cuidar. A orquídea e menina dos meus olhos,pois mesmo com minha falta de zelo sobreviveu um bom tempo. Me vi no personagem do texto...pela orquídea e pela minha percepção de alguns sentimentos.
=*