quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dor É Isso.

Tudo estava na forma como ela me segurava. Não na forma como ela me segurava ao mundo – disso ela sequer sabia. Desinteressada em ter-me sempre por perto, ou em ter-me, simplesmente. Tudo estava na forma como ela sorria. Pela boca, e pelos olhos, sorria de corpo inteiro. A forma como me segurava, bem, refiro-me às suas mãos – com palmas estranhamente vermelhas, apesar do resto do corpo pecaminosamente moreno -, e aos seus dedos. Como eles se espremiam contra mim, e traziam-na para perto, com suas unhas pequeninas e descascadas de esmalte preto. A forma como dirigia, sem nem olhar para frente ou para os lados, com os vidros todos abertos, os limites de velocidade ignorados, o som no volume máximo. Gostava de fado, e enquanto escutava, tentava emitir os mesmos sons das palavras cantadas, e enquanto tentava me escutar, e prestar atenção, ria. Como ria...ria tão fácil. Se eu já não fosse feliz, ela poderia ter me transformado. Para atingir a doçura das coisas pequenas, e simples. Se eu, em um maço de folhas, fosse escrever minhas memórias, com certeza a colocaria entre elas. Um número não muito grande de páginas. Mas seriam todas lilás, com uma macieira vistosa no canto superior, e maçãs caídas entre as palavras, e raízes atravessando as folhas. Se fui invadido? Deus queira nunca mais reabrir meus poros. Pelo medo de que o cheiro dela me escape. Uma vez, eu de pé lavando a louça, ela surgiu para trás e se apertou tanto contra mim que senti sair meu estômago. Murmurrou algo que não quis repetir. Interpretei como um daqueles momento em quê o que se quer dizer é algo tão denso, tão grande, que acabamos perdendo o sentido. Um impulso. Você vê? Você entende? Algo ali me disse que era amor, ou caminhava para isso. Que não levaríamos muito tempo até deitarmos nossos temores um no outro – amor é tratamento para o medo e, ao mesmo tempo, agravante. Tínhamos uma ligação muito particular. Muito nossa. Ela só me procurava quando me queria, precisava. Eu só a procurava o tempo todo, todo dia. Mesmo não acreditando em nada disso, eu fingia que sim, para ver se a convencia do mesmo. Entrega? Isso é bem coisa de idiotas. E ela ria mesmo depois de dizer coisas como essa. Ignorava minha esperança naquilo. Dizia que sim, acreditava no amor, mas como algo pleno, que nunca pode ser encarceirado ou domado, algo independente que só funciona flutuando numa outra esfera qualquer. Depois de um tempo eu comecei a achar que ela usava demais das drogas todas. Aliás, ela gostava de tomar até o último gole, nunca deixar nem um grão, de puxar todos os fios. Era engraçada a forma como eu a cercava de todos os lados e ela, às vezes, ria, às vezes, fugia. Uma vez sumiu por quase um mês. Ela sabia como me segurar só apontando o dedo para o céu. Dentre as coisas mais gostosas, estavam as marcas de batom que ficavam no meu pescoço toda vez que nos encontrávamos. Os recadinhos que ela escondia pela minha casa. Os discos que saíamos para comprar juntos – geralmente nas Quartas, no fim de tarde, quando acontecia uma apresentação de blues no centro da cidade. E a mania de encaixar um café a todos os nossos encontros. Precisava ser quentinho. Café de garrafa. Senão não valia. Teve uma vez de sairmos correndo pela chuva atrás de algum lugar que satisfizesse esse nosso capricho. Chovia tanto que a água subiu até os joelhos. Lembro de pegá-la à força e colocá-la nas costas, não parou de se debater por um minuto, até que eu a soltasse. Reclamava tanto do couro molhado do estúpido sapato novo, que eu decidi pelo extremismo. Era tudo muito estúpido, para ser sincero, inclusive, ainda guardar estas lembranças, também é algo assim. Acho que as coisas se vão para ensinar um pouco mais sobre a saudade. A nostalgia. O passar dos anos. A saudade é a moeda que dita o valor de cada uma das coisas na vida de alguém. A importância. Tem até saudade de algo presente. Às vezes a gente está entre as pernas de uma pessoa e tudo que a gente mais deseja é estar entre os braços de uma outra. A gente sente falta de um amor, mesmo o tendo encontrado de novo. É que as formas mudam e muita coisa encontra dificuldade em se adaptar. Tudo está na forma como nos conformamos com as coisas. Sei lá, tudo estava na forma como ela se desprendia de todas as outras coisas que eu já havia visto no mundo. Uma pinta sobre os lábios, o rosto formando risquinhos toda vez que ela sorria – e cada um daqueles mil risquinhos sendo um único -, o esmalte preto descascado, os sapatos novos nos pés pequenos, uma mão no volante e a outra para fora da janela. Tudo estava na forma como ela dava graça a tudo. Se eu tivesse que reescrever nossa história – apesar de odiar essa expressão, “nossa história” para uma história que, no final, será igual a de todo mundo -, eu a pontuaria da mesma forma. Cheia de exclamações, apressada, sem vírgulas, como se tudo precisasse ser dito em um fôlego só. Quando ela pulava de cabeça na piscina à noite, e meu coração apertava com o medo de que errasse na força ou pegasse muito frio. Quando, pensando nela, meu peito ainda dói e as mãos ainda suam. Quando, relembrando das coisas, eu sei que nada foi ruim, mas que foi tudo necessário. Quando ela beijava meus lábios e tinha gosto de outros. Quando eu beijei outros lábios e não eram mais os dela. Quando eu soube que arriscaria tudo. Hoje eu sei que arriscaria de novo. Tudo está na forma como ela me empurrou para o mundo. Tirou a rodinha e me obrigou a descer a ladeira sozinho. Na forma como não durou, mas pareceu eterno. Tudo está na forma como ela sequer imagina. E, sem imaginar, liga às duas da madrugada pensando que está tudo bem me amar um pouco para me lembrar de como era me sentir assim. Tudo está na forma como ela não liga para nada, mas, mesmo assim, ainda tem gravado o meu número.

7 comentários:

Giselle Alencar disse...

Deitados na banheira ate entao era o meu preferido.
Ta mágico esse post, de verdade!!
=)

Julianna Motter disse...

Ah! Muito obrigada!

Anônimo disse...

Eu tenho seu número e quando estiver lendo meu poema pra deus eu te mando um torpedo, mesmo sabendo que você vai estar logo ali do lado, tocando sax.

Anônimo disse...

QUE COISA MAIS LINDA, JULIANNA! Esse entrou pra um dos meus preferidos junto com Infinito.

Anônimo disse...

:)

Julianna Motter disse...

Anônimos, se vocês não fossem anônimos, receberiam grandes abraços.

Geovanna disse...

"Acho que as coisas se vão para ensinar um pouco mais sobre a saudade. A nostalgia. O passar dos anos. A saudade é a moeda que dita o valor de cada uma das coisas na vida de alguém. A importância. Tem até saudade de algo presente."

e eu tenho saudade, viu...