quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Retornar.

Você se deita ao meu lado, enquanto eu finjo estar dormindo por horas. Você me espera de pé no aeroporto, enquanto eu finjo estar esperando por aquele momento há dias. A gente se abraça, se beija, se desnuda, se tranca, e transa. E as tranças do seu cabelo fazem barulho no travesseiro, e a minha falta de cabelo te pede por carinho. E a gente se abraça para afastar os pesadelos, e é quando eu suo frio, e acordo sedento por um copo de água. E na manhã seguinte, estou de partida. E chego em algum lugar que, de longe, parece lugar nenhum. E me deparo com uma língua diferente, com várias, na verdade. Que, no começo, parecem intrusas ao tocarem a minha sem trocarem palavras. E saio, com um total eclipse of the heart alheio tocando ao fundo do poço em que o enfiei. E pego o primeiro bondê que passa, de número oitenta e três, setenta e seis, quem sabe. E da janela manchada consigo ver a lua, e o cais que, um dia, deve ter sido o porto de alguém. E aproveito para tirar uma foto, e apagar segundos depois, quando penso que não deveria dividir contigo a magia dessa felicidade imunda, desfocada pelo vidro embaçado de chuva. É, justamente quando chove. Quando chove parece que tudo inunda. A rua lá fora, o buraco aqui dentro. Quando chove mal se vê o cais, mal eu tenho um porto. E então eu chego em algum lugar que, na verdade, é lugar nenhum. E me sento na beirada da calçada. E acendo um cigarro molhado, sem saber se foi a chuva, ou meus olhos. E começo a rabiscar em um papel, palavras tristes, meio doloridas por terem sido estranguladas. É que sabe eu não te mereço e você não merece isso mas eu sinto sua falta mas você que eu senti já não existe e passam das quatro horas eu sem saber que horas são aí porque saí do fuso e já não funciono. Cafeína adianta, nicotina nem tanto. Os goles de vinho tinto branco rosé verde ou sei lá se aquilo era vinho mesmo. E que me deixava em um estado de inércia agora eu estou atolado na lama do meu sapato. Os sonhos aqui se nublam pesadelos a nicotina aqui não ajuda contrai o tempo aqui não passa se arrasta e já não sei se bebi demais se fodi de menos se era seu corpo ou o meu se meu corpo um dia foi seu. E fecho o caderno, perco a tampa da caneta, um tanto de vida. E assisto o dia amanhecer. E apareço todo imundo no hotel, e a bela moça me oferece uma toalha. E, de brinde, a levo comigo. E lá vem o banho, e com a água que primeiro cai nela, me sinto bento. E a sensação passa, me sinto bastardo. E continuo a caminhar meio que caindo para um lado, sem saber se é escoliose ou culpa. E continuo a me arrastar por corredores e camas, até que um dia a esbórnia acaba. E eu entro no avião, e congelo com o ar-condicionado, e tento acender um cigarro no banheiro, mas algo de repente me impede. E lá vem a aeromoça. E sei lá o que acontece depois. Só sei que chego com a garganta inchada, e o zíper da calça aberto. E lá está você de pé, jogando fora o calendário no qual contou os dias. E me abraça apertado. E vamos para casa. E, de repente, meu ombro pesa ainda mais para o lado. Não sei se é sua mão miúda me puxando para ver umas flores ou a culpa. E acontecem todos os episódios de tira não tira eu tiro você também, e eu finjo que adormeço, e você finge que não sabe, e se deita, e me abraça. E seis anos depois, você de frente para o parapeito, depois do décimo quinto andar, olha em meus olhos lacrimejando e nada diz além de: às vezes a vida dá um medo, né?

4 comentários:

Mayara disse...

Aí, tenho uma puta admiração por você. E um puta orgulho também. Eu não sei como você consegue fazer seus textos serem maravilhosos dessa maneira, mas sei que você faz e muito bem. Impressionante como a cada dia parece que você fica mais intensa. E como a cada novo texto, você consegue mexer mais lá no interior, onde é praticamente impossível alcançar. Sério, parabéns.

Anônimo disse...

Inspirador.
Você é uma linda!

Louise Boeger disse...

Você me impressiona. Não sei se te recomendo pra todo mundo ou se vou morrer de ciumes de dividir isso com todo o mundo que merece ver e reconhecer esse talento incrível que vc tem. Parabéns, de novo.

Anônimo disse...

muito bem